Monday, February 04, 2008

A rainha do lago Mälaren





Ela se ergueu muito viva
traços trêmulos na água
os seus braços transparentes
ela me estende e me a
ESTOCOLMO, de Lucila Nogueira


Personalidade pernambucana plural, Lucila Nogueira é reconhecida sobretudo como poeta e ensaísta. Doutora em Letras (UFRJ) e professora de Cursos de Pós-Graduação e Graduação (UFPE), é também editora de revistas e livros, e promotora e colaboradora de importantes eventos no país e no exterior. Nome singular nas letras brasileiras, tem 15 livros de poesia publicados, entre eles uma obra com edição portuguesa, Zinganares (objeto, inclusive, de dissertação de Mestrado na PUCRS), e outras duas com traduções para o francês (Imilce, concluída, e A quarta forma do delírio, em andamento). Por duas vezes mereceu o Prêmio Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco: em 1978, com Almenara, e, em 1986, com Quasar.
Falar de Lucila Nogueira significa falar de complexidade e fascinação, dada sua originalidade temática exclusiva e o envolvimento que geram no receptor os textos que ela produz.
Um caleidoscópio infindável cabe em Estocolmo, sua última publicação poética (Recife: Ed. do Autor, 2004). O livro funciona para o leitor como um espaço para auto-avaliação e reencontro com mitologias de reflexão e despedida. Organiza-se em quatro partes, cada uma com 10 poemas. A qualidade estética prevalece desde a capa e abas, com textos e fotos, até a apresentação interna da edição.
Os poemas têm títulos instigantes e mais ainda parecem ter na Parte I. Nela, os textos são poético-narrativos, encantatórios e com teor mítico-místico perturbante. Presencia-se um devaneio lúcido numa outra dimensão de percepção, ainda que inspirado na beleza plástica referencial de uma cidade como Estocolmo e em mitos nórdicos escandinavos, como Odin e as valquírias. A elaboração dos textos, a exemplo da esmerada figuração da linguagem e das sinestesias, é fundamental para o efeito lírico-encantatório:

o céu soltou-se da terra ao som de mil violinos
e eu entro e saio da vida como os deuses ancestrais
fez-se jovem para sempre meu corpo feito das ilhas
esplendor dessa Estocolmo em marina de cristal
(“Toda no papel de prata” – p.15)

O fascínio da imaginação e das indagações se expande quando são consideradas as origens e os fins da existência, o ser e o nada. O devaneio é filosófico:

esta é a passagem do mundo subterrâneo
as almas esperando novos corpos
quem abre os portais da morte
abre também da vida as portas
(“Graal” – p.16)

Poesia profética, centra, na imagem da “sibila”, a clarividência que revela mitos ancestrais. Nesse âmbito, funde níveis díspares do conhecimento e personifica no eu poético feminino o espaço que o ser tem para manifestar-se na plenitude e também na consciência crítica social.
O ritmo dos versos Intensifica o efeito fruitivo da leitura. Os poemas de versos longos (14 e 15 sílabas) engendram um ritmo melódico de tonalidades alternadas e crescentes, que seduzem o ouvido e persuadem o leitor para deleitar-se com o inusitado, agressivo e fantástico que vai sendo proferido nos textos. Um exemplo pode ser lido em “Völva II” (p.19):

eu sou um anjo clandestino pai de Cristo e João Batista
eu teatro solitário de metáfora em ruína
eu estrofe desterrada num dicionário viking
quero as estantes vazias da ditadura dos livros

coberta por um lençol de seda e algodão egípcio
nossa diva está dormindo com saudades da Bolívia
seu gosto de anis / canela e cravo / açúcar / gengibre
congênita embriaguez de outros mundos nas pupilas

No poema final da primeira série do livro, “O horror da nossa época”, retorna a figura da “sibila”. Ela aparece em meio a uma temática apocalíptica, exaurida de suas profecias e dormindo em sono mitológico eterno. Tal estado não deverá ser interrompido por ninguém, para que a diva seja poupada da clarividência do brutal futuro.
Na Parte II, mantém-se o tom de poesia misteriosa e epifânica, e também a vinculação permanente do eu poético com a temporalidade (passado ancestral, presente e futuro) e a intemporalidade. O conhecimento intuitivo faz parte dessa forma de estar no mundo e se sobrepõe, muitas vezes, ao racional. Em “Uma visão” e em “Tudo é tangível”, verifica-se a permeabilidade do sujeito lírico aos diferentes níveis de percepção. Na estrofe seguinte encontra-se exemplo para a afirmação:

Tudo é tangível
os visitantes caminham entre nós
ouço as vozes na hora do crepúsculo
poemas estrangeiros
ecoando no mar
o outro mundo
a máquina de voar
agora converso com os anjos do estuário
(p.26)
A diretriz crítica, concomitante à insólita densidade reflexiva, recrudesce no livro quando são evocadas e homenageadas personalidades suecas como o cineasta Bergman, o escritor e dramaturgo Strindberg e, também, o cientista e filósofo Swedenborg. Resgatando passagens de suas vidas e aludindo intertextualmente às suas obras, o eu poético identifica-se a concepções humanitárias e paranormais a eles relacionadas.
Uma unidade na obra vai sendo traçada pelo paralelismo que se estabelece entre o desvelamento progressivo de âmbitos incomuns de percepção e a evolução da consciência crítica do eu lírico, que não admite diferenças e injustiças sociais.
A poesia de Estocolmo mantém uma linha de reflexão filosófica que inclui sempre o sujeito poético na trajetória humana universal e dentro do pensamento mítico de todas as nacionalidades. Esse imergir solidário e intemporal nos diferentes espaços e cosmogonias familiariza o sujeito com a diversidade e permite seu emergir comprometido com cada nova situação. Em “Mitos nórdicos nas ruas de Estocolmo” (p.32), poema que fecha o segundo conjunto de textos, lê-se:

Encontro mitos nórdicos nas ruas de Estocolmo
divindades me contemplam sem palavras sob o sol
aqui estou na partida de xadrez imprevisível
aqui estou suspensa mais humana e ágil
no ponto em que o lago Mälaren encontra o mar Báltico

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

como o navio Vasa retorno à superfície
após mais de três séculos no fundo do mar
descobrirão um dia dentro deste lago
meu testamento feito há tanto tempo atrás

A subjetividade transcendente do sujeito continua a ser iluminada nos poemas da Parte III, que a relacionam a novos elementos do cenário sueco:

Ilhas de Estocolmo na primavera
sentada no convés de Södermalm
penso no estreito contato magnético das coisas etéreas
que se desprendem materializadas do meu cérebro
(“Södermalm” – p.38)

A permanência do lirismo e da abstração é constante, mas o direcionamento dos textos aponta para o registro objetivo de pessoas, espaços e situação social da cidade de Estocolmo. E a visão para esse contexto é de aplauso, seja pelo exemplo de autenticidade que é dado pelos jovens, seja pela experiência da paz, segurança e direitos, que se mostram garantidos ao cidadão que lá se encontra. Esse quadro descritivo e de contemplação funciona como contraponto à situação invertida que vigora no Brasil, denunciada em poemas como “Carta ao Brasil” (p.43) e “Carta ao Recife” (p.44). Neles são dadas notícias ao país e à capital pernambucana de que há lugares no mundo em que os serviços públicos funcionam e a violência praticamente não existe.
A IV Parte do livro detém-se, de início, também em aspectos referenciais, sendo o olhar dirigido para Linköping, cidade histórica da Suécia meridional, de onde são descritos, com admiração, lugares como o “pavilhão chinês” (p.52) e a “floresta de Ryd” (p.53). O segundo poema dessa série final ressalta, em meio ao espaço medieval da catedral da cidade, a plena identificação do sujeito poético com a história escandinava:

Aqui eu vi a sagração do rei Valdemar no ano de 1251
Eu era uma princesa qualquer que fugia dos bosques em torno do castelo
E colhia flores e tocava flauta e sonhava na neve com toda a minha
Imaginação
(“Na catedral de Linköping” – p.51)
Estocolmo pode ser lido na vertente do lirismo confessional, onde os poemas são como que depoimentos de um eu poético que se expõe na cena. A declaração de chegar a uma consciência amadurecida e sofrida, ou a uma “nova lucidez”, é vigorosa no livro e pode ser constatada em textos como “Não posso ficar entediada” (p.54) e Runas em ruína” (p.57). A declaração desse estágio de compreensão prepara o leitor para o tom profético e de fatalidade que marca os últimos poemas do livro: a presença inevitável da “dama”, que se mostra muito próxima do sujeito lírico. Em “Toque em mim”, lê-se que ... a dama me espera na curva de qualquer esquina (p.58); em “Antes que tudo em mim seja elegia”, ... a dama já começa a rodear-me os passos (p.59). O final do livro metaforiza o final da existência, convertendo em passado o que era vida, em tempo presente, no papel.
O último poema, “ O cérebro não registra” (p.60), consiste numa metapoesia dolorida, que costura no ofício da escrita lírica um sentido infinitamente renovável para a condição de estar vivo, e, ao mesmo tempo, vazio, para a humana condição final. O impasse fica declarado, e a consciência proclama implicitamente a ausência de saídas.
Assim, falar de Lucila Nogueira, de suas obras e especialmente de Estocolmo, significa falar de complexidade e fascinação. Significa falar de uma poesia brasileira originalíssima, madura e consciente, edificada sobre sólida lírica mitológica e capaz de ultrapassar, com mestria, os limites que normalmente reduzem os seres humanos a meras unidades isoladas e convencionais.


LÍGIA MILITZ DA COSTA
Universidade de Cruz Alta – RSbraça
entrega-me um cofre estranho
sob o sol da Escandinávia
deixa que agora eu retorne
ela me diz sem palavras
ao meu mundo submarino
ao solar da eternidade
fico de novo sozinha
às margens do lago Malären
e abro o cofre tão antigo
por tanto tempo guardado
não são moedas nem jóias:
só meu nome em letras góticas.


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