Monday, February 04, 2008


- Desespero Blue, de Lucila Nogueira - "Desespero Blue" é uma obra apaixonada que invoca todas as facetas de Lucila : seja um pub underground, uma abadia espanhola poeirenta, os Alpes cruzados por elefantes de guerra, lá está a poetisa que se despe ao som de Carmina Burana, a profetisa do Apocalipse en "Quasar", a druidesa celta que canta jazz estalando castanholas. "Desdizeres" evoca do passado as palavras dos grandes mestres - é, sim, uma grande dedicatória àqueles que fazem de nós todos o que realmente somos. "Sentimento Súbito" é a coda, o gran finale : o poema dá enfim a cor ao livro, toda essa nuance azulada que ele respira - Bruno Piffardini - Edições Bagaço - Recife - 2003 - 82 p - ISBN - 85-7409-581-8
Sentimento Súbito



A Cícero Belmar
Marina Nogueira
e Eduardo Diógenes



Porque você nada sabe da insônia
não venha assim desavisado com esse universo de frases
protocolares
e toda uma higiene pasteurizada de ternura
cuidado e não se aproxime demais
existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar
em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento
súbito


a água que lavou as letras da biblioteca
é um sinal de que o amor e a palavra exigem renovação
que tanto estudo não resolve o desamparo
e que continua desabitada a casa que sou

finjo-me autobiográfica e renasço como personagem
espasmo de eletrochoque eu sirvo o meu senhor
ducha de eletricidade eu sirvo o meu senhor
e basta o seu tom de voz ser um pouco menos terno
que eu já sinto dor


como quem escolhe uma salada de rúcula
em um cardápio de veludo escuro
você está sentado numa poltrona de aço
que já começa a ser engolida
pelo mar vulcânico da minha loucura

não sei porque tudo vinha tão vagarosamente de modo
calmo
e de repente foi aquele estalo aquele sobressalto
e você não entendeu nos intervalos de linguagem
o meu jeito pelo avesso de cantar um blue


você não entendeu nada
você não percebeu que eu sou um fósforo apagado
esquecido na fuligem com memória do passado
que a vida cai pesadamente em meu cabelo azulado
e para a tela grande perder o colorido basta uma pilha se
gastar

por isso eu chego a ti numa bolha de sabão gigante
soprada no canudo de mamoeiro do quintal da infância
onde aprendi a noite o sol os cristais coloridos e as músicas
ciganas
daí que basta você me tocar e eu retorno à vida
quebra-se o encanto e o feitiço
e saio para a realidade carne que se desprende das páginas
do livro


escrevo sobre a vida como um exorcismo
não tenho remorso do que vivo
o meu poema é o sinônimo da minha pele exposta
na implosão do muro de Berlim dos sentimentos físicos

sinal vermelho
rostos vazios
caminhei coberta de sargaços na avenida
como um insignificante alfinete atraído por um imã
e perdi o sono perambulando nos telhados
à procura das palavras mais precisas
quando finalmente descobri que o que importa mesmo
sempre está implícito


e agora
eu só quero que você ouça minha voz subterrânea
ecoando muito além de toda superfície
mesmo que em mim nada esteja a salvo
quero que observe com perplexidade como eu tenho estilo
e a melancolia dos meus olhos claros
atravessa nervosamente o cosmos como um neutrino
argila submarina de abalos sísmicos na manhã de uma
rua vazia de domingo

hoje falta-me companhia para sair e beber um vinho
nada acontece e eu não sei como faça para manter-me
viva
nada acontece e eu fico inerte sem regresso nem partida
devo mudar uma vida que já não me serve
mas ando muito cansada de ser sempre eu a tomar todas
as iniciativas


você não entendeu nada
e eu estava dizendo apenas na verdade
que subitamente eu fui ficando perturbada
você me lê somente para encontrar suas palavras
mas eu venho de uma raça de saltimbancos e acrobatas
e brilham relâmpagos das tempestades nos meus gestos
delicados



o meu corpo flutua como sílabas de imagens congeladas
e nessa opressão desarticulada decido desesperadamente
ficar calada
mas não esqueço o convite para ver as estrelas num
deserto de Marrocos
nem a minha estranha fuga automática daquele mundo
cor-de-rosa entre penhascos
para voltar aqui e ficar sempre à espera do destino e do
acaso
sentinela do nada

e a vida passa como as nuvens na janela
da próxima vez eu vou ter mais cuidado
porque das outras sei que estraguei tudo só por ter medo
de encarar a realidade


eu vou telefonar
depois a gente se fala
agora eu não posso acordar
entenda que eu carrego a saudade das aves migratórias
que sobrevoam os alpinistas do círculo polar

porque você nada sabe da insônia
e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar
em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento
súbito





Desespero Blue, 2003


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