Sunday, February 03, 2008

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE,DE LUCILA NOGUEIRA

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE, DE LUCILA NOGUEIRA

André Cervinskis *


Lançado em 1999, Imilce é de autoria da poeta luso-galego-brasileira Lucila Nogueira. Há vários anos, professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, tem, entre seus livros mais conhecidos, "Almenara", com o qual ganhou seu primeiro prêmio literário (Prêmio Manuel Bandeira, Governo de Pernambuco, 1978); "A dama de Alicante" (1990); Ainadamar (1996), Ilaiana(1997) ,"Zinganares" (Lisboa,1998), Amaya(2001),A quarta forma do Delírio (2002),Refletores (2002),Desespero Blue(2003),Estocolmo (2004), além de vários outros de ensaio e de crítica literária. Pelos títulos, já se pode perceber a dimensão onírica e o empenho em resgatar e trabalhar a mitologia, especialmente a ibérica.
A obra, na qual me deterei, retrata o "lado oculto" das histórias dos grandes heróis, pois coloca a voz da amada, Imilce, como ponto de partida da trajetória lírica. O livro, na verdade um poema em 4 vozes, de pouco mais de 90 páginas, é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. Os personagens são o próprio Aníbal, sua mãel, seu filho e Imilce. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta de seus amados.
Percebe-se, portanto, como cabe essa abordagem teórica à obra, uma vez que, segundo Durand (1989, p. 234), todo personagem histórico tem bases míticas. Seguindo a estrutura das grandes tragédias gregas (várias vozes no poema), Lucila, porém, subverte ao colocar a desconhecida suposta amada de Aníbal Barca como personagem principal do livro. Como que situando o enredo, a autora se esforça por citar toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante e mesmo os povos antigos, como romanos, mouros e gregos são freqüentes no texto. Cada lugar desses poderia esconder em si uma série de mitologias particulares, que não cabe analisar aqui. Percebe-se, no entanto, a preocupação da autora em colocar nomes que não somente fossem líricos, mas que demonstrassem o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano, na antigüidade.
Todo texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém, de forma subjacente, um mito. Imilce não o possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebe-se claramente as referências às mitologias judaico-cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó - p 77) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); além de outras específicas, como a ibérica, a celta, a judia, a dos ciganos, mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores (p.96); viu soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (p. 96). Fato inevitável, as mitologias greco-romana e cristã incorporaram elementos das demais, absorvendo a cultura do Império Romano, que trouxe em seu bojo crenças e práticas pagãs, promovendo uma “inculturação” que fez renascer, com novas roupagens, mitos antigos: Maria, Ísis, Gaia; Apolo, Elias, os Profetas .
Outra recorrência em Imilce, como em toda a obra de Nogueira, é a presença de elementos da natureza: (Imilce) são colunas de cedro minhas pernas..(14); são tão brancas as estrelas,/ quer do céu, quer do mar... (p. 24). Natureza essa que é perpassada por elementos mágicos, por vezes numa também clara referência ao esoterismo/ocultismo: (filho de Aníbal) ...O vidro de tua alma /errante/ andando em círculos perfeitos e pedras e cristais/ e solilóquios. (P. 27); minha mãe/ sem saber quem elas eram/ misturou-as/ com ervas e perfumes... era um espelho de púrpura/ em que via/ palavras de outra língua me chamando...(p. 25); Imilce enlouquecera/levando em cada mão/ um candelabro (p.26); (Aníbal): quero o feitiço de teu vinho de tâmara... (p.40). Os círculos, remetendo ao eterno movimento espiral do universo, que morre e renasce, é comum em diversas mitologias, inclusive no candomblé brasileiro. Pedras, cristais, esmeraldas e espelho: elementos ocultos, descortinando referências claras. Portanto,os personagens ligados à feitiçaria, como a rainha má de Branca de Neve e os Sete Anões.
Os metais e pedras preciosas também são usados; (mãe de Aníbal): aceso candelabro/ ensolarado/ nas fábricas de prata e de púrpura... (p. 47); (Imilce) irei ao país/ dos garamantes/ trarei as caledônias e esmeraldas... (p.72); ao sol das Pedras Negras ... (83); ): meus seios são cordilheiras de prata (p. 14); cabelos em um cristal multiplicado... (p.92). O cristal, como se sabe, é usado em rituais de adivinhação ciganos. O cristal, translúcido, revela o passado e o presente de quem o procura. É, portanto, um mito redundante em Lucila, que se repete em outras obras suas: a busca de sua origem ibérica, influenciada por esse povo que vive e respira misticismo. As pedras negras são as mais preciosas pedras, por serem raras, A pérola, por exemplo. A cordilheira de prata para os seios são imagens que remetem à Gaia, deusa-mãe de todos, na mitologia grega. A presença, aliás, da mãe de Aníbal já demonstra essa busca do Gênesis, da origem de todas as coisas; a mulher é portadora da vida e dos mistérios da criação: (mãe de Aníbal): ...e a força de negar faz-me uma deusa...(p.69); ... sou o leite/ das mães que amamentaram... (p.73); inverterei os céus/nesse momento(...)sou eu quem fere/ e quem dá a cura... (p. 73); (Imilce): o leite dos vulcões /desenha o orvalho... (p.63); sou as colunas/ em que senta o mundo; sou os passos/ dos vivos e dos mortos... (p.73).
A presença de árvores, na lírica, também é significativa, especialmente de palmeiras, sicômoros e oliveiras: ... da cor dessas palmeiras de Cartago... (p.37); Palmeiras de Cartago e de Oretania... (p.39); ... à sombra dos sicômoros/ gigantes/ à sobra/ das acácias e palmeiras... (p.52). Palmeiras são árvores gigantes, incólumes; chamam a atenção de quem passa, alcançam os deuses com sua altura. É símbolo, portanto, de grandeza e transcendência. A oliveira é uma árvore bíblica; dela se produz o azeite, importantíssimo na cultura judaica. Com ele se faz o pão ázimo, sem fermento (na passagem da viúva de Sarepta, de Elias); também o azeite foi usado para ungir reis e profetas e curar o samaritano da parábola bíblica. Os sicômoros são árvores sob as quais os judeus repousavam. Jesus encontrou Felipe debaixo de um sicômoro; também Davi descansava sob um quando Samuel o chamou para ser rei. É o encontro do indivíduo com seu destino. Nenhum simbolismo mais apropriado, portanto, do que esse, para explicitar a necessidade de transcender às dificuldades da epopéia dos personagens do livro, especialmente Aníbal Barca.
O caráter heróico da obra é evidenciado pela menção explícita de Hércules, o semideus grego que desafiou Zeus: aqui ele há de crescer/ ao sol de Hércules ... (p.43). O sol, símbolo de força e determinação, inspirando sentimentos nobres - os semideuses, frutos de amores dos deuses com humanos, eram de natureza humana, mas com poderes divinos. Geralmente, eram protagonistas de odisséias. Também a águia, símbolo de bravura: (filho de Aníbal); ... esta águia invisível / me acompanha/ aonde quer que eu vá/ dentro da Espanha (p. 21) (...) sem temer/ a vingança de um gigante?E, como em toda história mítica, há a presença de um oráculo: ... e a profecia/ se perde/ no mistério de suas asas.. (p.31); ... instinto da poesia oracular... (p.59)
Há, portanto, estampado, em todo o livro, o caráter heróico que Gilbert Durand defendeu em suas Estruturas Antropológicas do Imaginário. Maria Zaira Turchi (2003, p.33), em seu livro Literatura e antropologia do imaginário, afirma que a imaginação diurna adota uma atitude heróica, energia libidinal positiva, que aumenta o aspecto tenebroso, ogresco e maléfico da face de Cronos, endurecendo as antíteses simbólicas, através da figura ascensional e luminosa do herói com suas armas, a fim de combater a ameaça noturna . Podemos dizer, sem medo de errar, que Lucila buscou imprimir esse caráter heróico em seus personagens. Aníbal Barca, general cartaginês, parte da Espanha em guerra contra os romanos, deixando sua esposa e o filho de 9 anos (NOGUEIRA, p.33-5): (Aníbal): lutei com os romanos, doce Imilce/ acreditei no engodo da batalha; lutei contra o que vi transformaria em um espetáculo de sangue; lutei porque te amava, chão de Espanha. Para me derrotar foi necessária/ a traição servil de outro africano (idem, 75).
As mulheres, não menos heróicas, corajosamente encaram seu destino de sofrimento e desamparo: (mãe de Aníbal): na vida/ vi morrer marido e filhos (p.45); ... mulheres esquecidas nos palácios; (...) toda mulher que ama/ perde o chão (p. 46); (Imilce): agora entendo/ que me abandonaste/ cavalgando elefantes e leões ... (p.57). O próprio filho de Aníbal sente-se tocado por esse clima bélico: minha mãe/ viu soldados diferentes/ partindo para a África e a Ásia... (p. 96).
O amor e a sina dessas mulheres, como nessa passagem em que fala o filho de Aníbal, também é explorado no livro com erotismo e virulenta paixão: (mãe de Aníbal): trago discos de ouro/ nas orelhas/ refletindo o meu colo/ todo em chamas; não falarão do amor/ destas mulheres/ sozinhas a queimar/ até a loucura; Amílcar, guardo (...) os teus gritos de homem/ no meu quarto (p.51). Amor este que, por fim, deu a elas a melancolia/ dos doentes/ e o silêncio/ das almas taciturnas (p. 93).
Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio (p. 14); vem ver-me andar no fogo sobre as águas (p. 15); eu desejava o mundo como um círio ardendo (p. 17); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio (p. 19); e os altares acesos na comédia dos deuses (p.22); ... levando em cada mão um candelabro... (p.26) era dia e era noite/ e a chama acesa... (p.27); minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... (p.30);... não vive sem azeite tanto fogo... (p. 38);... que minha mãe jogou dentro do fogo... (p43).
Por que a recorrência do fogo/luz em Imilce? Talvez a autora veja nesse tema o mesmo que Gaston Bachelard (1938, p. 23), em seu livro A Psicanálise do Fogo: o fogo e o calor fornecem meios de explicação nos mais diversos campos (...). o que na vida se modifica depressa é explicado pelo fogo. O fogo é íntimo e universal. Vive no céu. Sobe das profundezas do inferno e oferece-se como amor. Volta a tornar-se matéria e oculta-se latente, contido, como o ódio e a vingança. (...) Pode contradizer-se: é portanto um dos princípios da explicação universal. O fogo, continua Bachelard, é usado como sinônimo das mais avassaladoras paixões humanas: o amor e o ódio. O fogo é símbolo de sexualidade, de vida, de movimento: (Imilce): ... e eu não pude/seguir-te ao sol... (p.60); meu coração (...) no desejo de ver-te/ encontra a luz.. (p.61) eu vivo em uma luz que apaga o dia ... (p.62). Geralmente as noites eram usadas para o amor e o fogo era presente nessas noites dos antigos. O fogo de Prometeu, que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação; Jesus mesmo revelou: eu vim trazer fogo sobre a terra, e como gostaria que ela ardesse! Há, aliás, elementos dessa mitologia em alguns trechos do livro: ... eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário. (p.15); ...cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais (p.47); leões crucificados de Cartago (p. 46)
O fogo, portanto, perpassa a nossa vida e a nossa tradição. Mas Lucila está a procura de um fogo mágico, sagrado: (Imilce): ...queimou/ as minhas mãos dentro da chuva (p.88); seu fogo se acendia e se apagava ... (p.91), como a sarça ardente de Moisés, no episódio do Êxodo hebreu. Locais sagrados e rituais são, inclusive, uma constante em seus versos: quero imitar a dança/ das estrelas/ lascívia mística/ em altar sagrado... (p. 53); ó calçadas de prata, ó santuário ... (p.39); e os altares acesos/ na tragédia (p. 23).
Poder-se-ia estender, por páginas e páginas, a presença da mitologia na obra de Lucila Nogueira. Contudo, resta a vontade de se continuar a buscar, em autores desta geração, o simbolismo mitológico que a poesia, com certeza, inspira nos poetas. Os heróis, no entanto, como em diversas narrativas clássicas, nem sempre concluem com vitória seu intento: (filho de Aníbal): pobre meu pai/ que nunca mais voltou (...) nunca vi seu rosto/de prata/ na moeda em Cartagena/ ou no busto/ de bronze do Marrocos (p.102); meu pai, triste heroísmo de ser morto (p. 103). Tal desfecho faz emergir em Imilce medo da força das palavras (p. 102). Finalmente, a poeta conclui o livro com uma constatação realista que a todos entristece: Mudaram/ só os nomes dos tiranos.


BIBLIOGRAFIA

G., BACHELARD. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo, 3.a edição, Marins Fontes, 2002.
G., BACHELARD. A psicanálise do fogo. Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1937.
G. DURAND. A imaginação simbólica. SP: Cultrix, 1988.
D. F. DENÓFRIO. Eros: a vez do mito em Carlos Fernando Guimarães. Crítica e interpretação. , n.4, p.151-4.
L. F. FERREIRA SÁ. Mito e mosaico: Orfeu e queda em Texaco. ANPOLL, n. 4, p.157, jan./jun. 1998.
S. JOACHIN. O mito na obra do poeta Gilles Hénault. Investigações, v. 9, p.49-72.
L. MUCILLO. O mito de Ísis no asno de Ouro. Ver. Cerrados, Brasília, n. 4, 1995.
E. M.MIELIETINSKI. A poética do mito. RJ: Forense-Universitária, 1987.
___________. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989 L ., NOGUEIRA Imilce. . Recife Cia. Pacífica, , 2000.
M. C. PANDOLFO. Mito e literatura. Rio de Janeiro, Plurarte, 1981.
M. Z. ZURCHI. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília, Ed. UnB: 2003.

O delírio de Imilce



Agora entendo


que me abandonaste
cavalgando


elefantes e leões
agora entendo


que me abandonaste
na terra


onde escolhi tua legião


caminho


contra a lei da gravidade
foi mais


do que eu podia suportar
meu corpo


vive a morte que é de outro
e a vida


é uma canção de transmigrar


a morte é retirada


e é retorno
água da mesma fonte


vertical
agora entendo


que me abandonaste
porque tu não morreste.


E eu estou só.


O vento


que arrastou meu pensamento
secou


todas as folhas nos degraus
e este meu desconcerto


te perturba
minha voz de silêncio


faz-te mal




não tenho


consciência do que digo
instinto


da poesia oracular
e uma descarga elétrica


esquisita
ordena


que eu caminhe sem cessar


subjugada estou


pelo delírio
vejo imagens


no estado natural
são velas


de um navio na tempestade
bandeiras


ao clarim de uma manhã


Meu pensamento


está em toda parte
a realidade inteira


é esta visão
as almas não se tocam


como a carne
e o seu desenho


transmigra no som


o mundo


é um teatro abandonado
com meu grito selvagem


ao luar
agora entendo


que me abandonaste
e eu não pude seguir-te


sob o sol




amar não basta:


é preciso dizê-lo
para reter a entrega


nos portões
meu coração


é o tom da primavera
no desejo de ver-te


encontra a luz


meu cérebro


é um girassol girando
insaciável


bêbado e gigante
na dança milenar


dos babilônios
na devoção extática


do sonho


minha imagem


dissolve-se na tarde
passou a mocidade


e estou sozinha
existência sem vida


no vazio
viver me desespera


todavia


os dentes de narval


não cicatrizam
a moleza de cera


das feridas
eu vivo em uma luz


que apaga o dia
pisando em formas


tão desconhecidas




vontade de voar


na madrugada
no túnel das girândolas


da carne
vontade de voar


nas cordilheiras
nos raios


das ramagens desse azul


percebo as relações


mais invisíveis
do sistema nervoso


da galáxia
o leite dos vulcões


desenha o orvalho
nas tochas geométricas


do sono


e o olho que surgiu


foi insensato
em espiral


no fogo do dragão
e em círculos girei


em outro corpo
eu era de mim mesma


uma visão


recuso-me a aceitar


toda esta mágoa
digo ao destino


que se equivocou
inda escuto seus passos


pela casa
o tempo até cruzar


o corredor




inda escuto seus passos


pela casa
perfeito como um deus


e hoje é assim
tenho medo


da força das palavras
medo da profecia


que há em mim


O que dizer


quando o amor se acaba?
O que é a loucura


senão um motim?
era o meu companheiro


bem-amado
quanta coisa ele fez


só para mim


partiu sem mais voltar


Aníbal Barca
(quanta coisa ele fez


só para mim)
recuso-me a aceitar


toda esta mágoa
recordo o tempo


em que eu era feliz


e o que é a loucura


senão a lembrança
de algo que se perdeu


sem se pedir
e o que é o amor


senão uma loucura
que tenta


a eternidade construir?




Agora entendo


que me abandonaste
por isso falo só


neste jardim
agora entendo


que me abandonaste
recordo o tempo


em que eu era feliz


- e o que dizer


quando um amor se acaba?
e o que é a loucura


senão um motim?

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE, DE LUCILA NOGUEIRA

André Cervinskis *


Lançado em 1999, Imilce é de autoria da poeta luso-galego-brasileira Lucila Nogueira. Há vários anos, professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, tem, entre seus livros mais conhecidos, "Almenara", com o qual ganhou seu primeiro prêmio literário (Prêmio Manuel Bandeira, Governo de Pernambuco, 1978); "A dama de Alicante" (1990); Ainadamar (1996), Ilaiana(1997) ,"Zinganares" (Lisboa,1998), Amaya(2001),A quarta forma do Delírio (2002),Refletores (2002),Desespero Blue(2003),Estocolmo (2004), além de vários outros de ensaio e de crítica literária. Pelos títulos, já se pode perceber a dimensão onírica e o empenho em resgatar e trabalhar a mitologia, especialmente a ibérica.
A obra, na qual me deterei, retrata o "lado oculto" das histórias dos grandes heróis, pois coloca a voz da amada, Imilce, como ponto de partida da trajetória lírica. O livro, na verdade um poema em 4 vozes, de pouco mais de 90 páginas, é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. Os personagens são o próprio Aníbal, sua mãel, seu filho e Imilce. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta de seus amados.
Percebe-se, portanto, como cabe essa abordagem teórica à obra, uma vez que, segundo Durand (1989, p. 234), todo personagem histórico tem bases míticas. Seguindo a estrutura das grandes tragédias gregas (várias vozes no poema), Lucila, porém, subverte ao colocar a desconhecida suposta amada de Aníbal Barca como personagem principal do livro. Como que situando o enredo, a autora se esforça por citar toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante e mesmo os povos antigos, como romanos, mouros e gregos são freqüentes no texto. Cada lugar desses poderia esconder em si uma série de mitologias particulares, que não cabe analisar aqui. Percebe-se, no entanto, a preocupação da autora em colocar nomes que não somente fossem líricos, mas que demonstrassem o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano, na antigüidade.
Todo texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém, de forma subjacente, um mito. Imilce não o possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebe-se claramente as referências às mitologias judaico-cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó - p 77) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); além de outras específicas, como a ibérica, a celta, a judia, a dos ciganos, mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores (p.96); viu soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (p. 96). Fato inevitável, as mitologias greco-romana e cristã incorporaram elementos das demais, absorvendo a cultura do Império Romano, que trouxe em seu bojo crenças e práticas pagãs, promovendo uma “inculturação” que fez renascer, com novas roupagens, mitos antigos: Maria, Ísis, Gaia; Apolo, Elias, os Profetas .
Outra recorrência em Imilce, como em toda a obra de Nogueira, é a presença de elementos da natureza: (Imilce) são colunas de cedro minhas pernas..(14); são tão brancas as estrelas,/ quer do céu, quer do mar... (p. 24). Natureza essa que é perpassada por elementos mágicos, por vezes numa também clara referência ao esoterismo/ocultismo: (filho de Aníbal) ...O vidro de tua alma /errante/ andando em círculos perfeitos e pedras e cristais/ e solilóquios. (P. 27); minha mãe/ sem saber quem elas eram/ misturou-as/ com ervas e perfumes... era um espelho de púrpura/ em que via/ palavras de outra língua me chamando...(p. 25); Imilce enlouquecera/levando em cada mão/ um candelabro (p.26); (Aníbal): quero o feitiço de teu vinho de tâmara... (p.40). Os círculos, remetendo ao eterno movimento espiral do universo, que morre e renasce, é comum em diversas mitologias, inclusive no candomblé brasileiro. Pedras, cristais, esmeraldas e espelho: elementos ocultos, descortinando referências claras. Portanto,os personagens ligados à feitiçaria, como a rainha má de Branca de Neve e os Sete Anões.
Os metais e pedras preciosas também são usados; (mãe de Aníbal): aceso candelabro/ ensolarado/ nas fábricas de prata e de púrpura... (p. 47); (Imilce) irei ao país/ dos garamantes/ trarei as caledônias e esmeraldas... (p.72); ao sol das Pedras Negras ... (83); ): meus seios são cordilheiras de prata (p. 14); cabelos em um cristal multiplicado... (p.92). O cristal, como se sabe, é usado em rituais de adivinhação ciganos. O cristal, translúcido, revela o passado e o presente de quem o procura. É, portanto, um mito redundante em Lucila, que se repete em outras obras suas: a busca de sua origem ibérica, influenciada por esse povo que vive e respira misticismo. As pedras negras são as mais preciosas pedras, por serem raras, A pérola, por exemplo. A cordilheira de prata para os seios são imagens que remetem à Gaia, deusa-mãe de todos, na mitologia grega. A presença, aliás, da mãe de Aníbal já demonstra essa busca do Gênesis, da origem de todas as coisas; a mulher é portadora da vida e dos mistérios da criação: (mãe de Aníbal): ...e a força de negar faz-me uma deusa...(p.69); ... sou o leite/ das mães que amamentaram... (p.73); inverterei os céus/nesse momento(...)sou eu quem fere/ e quem dá a cura... (p. 73); (Imilce): o leite dos vulcões /desenha o orvalho... (p.63); sou as colunas/ em que senta o mundo; sou os passos/ dos vivos e dos mortos... (p.73).
A presença de árvores, na lírica, também é significativa, especialmente de palmeiras, sicômoros e oliveiras: ... da cor dessas palmeiras de Cartago... (p.37); Palmeiras de Cartago e de Oretania... (p.39); ... à sombra dos sicômoros/ gigantes/ à sobra/ das acácias e palmeiras... (p.52). Palmeiras são árvores gigantes, incólumes; chamam a atenção de quem passa, alcançam os deuses com sua altura. É símbolo, portanto, de grandeza e transcendência. A oliveira é uma árvore bíblica; dela se produz o azeite, importantíssimo na cultura judaica. Com ele se faz o pão ázimo, sem fermento (na passagem da viúva de Sarepta, de Elias); também o azeite foi usado para ungir reis e profetas e curar o samaritano da parábola bíblica. Os sicômoros são árvores sob as quais os judeus repousavam. Jesus encontrou Felipe debaixo de um sicômoro; também Davi descansava sob um quando Samuel o chamou para ser rei. É o encontro do indivíduo com seu destino. Nenhum simbolismo mais apropriado, portanto, do que esse, para explicitar a necessidade de transcender às dificuldades da epopéia dos personagens do livro, especialmente Aníbal Barca.
O caráter heróico da obra é evidenciado pela menção explícita de Hércules, o semideus grego que desafiou Zeus: aqui ele há de crescer/ ao sol de Hércules ... (p.43). O sol, símbolo de força e determinação, inspirando sentimentos nobres - os semideuses, frutos de amores dos deuses com humanos, eram de natureza humana, mas com poderes divinos. Geralmente, eram protagonistas de odisséias. Também a águia, símbolo de bravura: (filho de Aníbal); ... esta águia invisível / me acompanha/ aonde quer que eu vá/ dentro da Espanha (p. 21) (...) sem temer/ a vingança de um gigante?E, como em toda história mítica, há a presença de um oráculo: ... e a profecia/ se perde/ no mistério de suas asas.. (p.31); ... instinto da poesia oracular... (p.59)
Há, portanto, estampado, em todo o livro, o caráter heróico que Gilbert Durand defendeu em suas Estruturas Antropológicas do Imaginário. Maria Zaira Turchi (2003, p.33), em seu livro Literatura e antropologia do imaginário, afirma que a imaginação diurna adota uma atitude heróica, energia libidinal positiva, que aumenta o aspecto tenebroso, ogresco e maléfico da face de Cronos, endurecendo as antíteses simbólicas, através da figura ascensional e luminosa do herói com suas armas, a fim de combater a ameaça noturna . Podemos dizer, sem medo de errar, que Lucila buscou imprimir esse caráter heróico em seus personagens. Aníbal Barca, general cartaginês, parte da Espanha em guerra contra os romanos, deixando sua esposa e o filho de 9 anos (NOGUEIRA, p.33-5): (Aníbal): lutei com os romanos, doce Imilce/ acreditei no engodo da batalha; lutei contra o que vi transformaria em um espetáculo de sangue; lutei porque te amava, chão de Espanha. Para me derrotar foi necessária/ a traição servil de outro africano (idem, 75).
As mulheres, não menos heróicas, corajosamente encaram seu destino de sofrimento e desamparo: (mãe de Aníbal): na vida/ vi morrer marido e filhos (p.45); ... mulheres esquecidas nos palácios; (...) toda mulher que ama/ perde o chão (p. 46); (Imilce): agora entendo/ que me abandonaste/ cavalgando elefantes e leões ... (p.57). O próprio filho de Aníbal sente-se tocado por esse clima bélico: minha mãe/ viu soldados diferentes/ partindo para a África e a Ásia... (p. 96).
O amor e a sina dessas mulheres, como nessa passagem em que fala o filho de Aníbal, também é explorado no livro com erotismo e virulenta paixão: (mãe de Aníbal): trago discos de ouro/ nas orelhas/ refletindo o meu colo/ todo em chamas; não falarão do amor/ destas mulheres/ sozinhas a queimar/ até a loucura; Amílcar, guardo (...) os teus gritos de homem/ no meu quarto (p.51). Amor este que, por fim, deu a elas a melancolia/ dos doentes/ e o silêncio/ das almas taciturnas (p. 93).
Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio (p. 14); vem ver-me andar no fogo sobre as águas (p. 15); eu desejava o mundo como um círio ardendo (p. 17); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio (p. 19); e os altares acesos na comédia dos deuses (p.22); ... levando em cada mão um candelabro... (p.26) era dia e era noite/ e a chama acesa... (p.27); minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... (p.30);... não vive sem azeite tanto fogo... (p. 38);... que minha mãe jogou dentro do fogo... (p43).
Por que a recorrência do fogo/luz em Imilce? Talvez a autora veja nesse tema o mesmo que Gaston Bachelard (1938, p. 23), em seu livro A Psicanálise do Fogo: o fogo e o calor fornecem meios de explicação nos mais diversos campos (...). o que na vida se modifica depressa é explicado pelo fogo. O fogo é íntimo e universal. Vive no céu. Sobe das profundezas do inferno e oferece-se como amor. Volta a tornar-se matéria e oculta-se latente, contido, como o ódio e a vingança. (...) Pode contradizer-se: é portanto um dos princípios da explicação universal. O fogo, continua Bachelard, é usado como sinônimo das mais avassaladoras paixões humanas: o amor e o ódio. O fogo é símbolo de sexualidade, de vida, de movimento: (Imilce): ... e eu não pude/seguir-te ao sol... (p.60); meu coração (...) no desejo de ver-te/ encontra a luz.. (p.61) eu vivo em uma luz que apaga o dia ... (p.62). Geralmente as noites eram usadas para o amor e o fogo era presente nessas noites dos antigos. O fogo de Prometeu, que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação; Jesus mesmo revelou: eu vim trazer fogo sobre a terra, e como gostaria que ela ardesse! Há, aliás, elementos dessa mitologia em alguns trechos do livro: ... eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário. (p.15); ...cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais (p.47); leões crucificados de Cartago (p. 46)
O fogo, portanto, perpassa a nossa vida e a nossa tradição. Mas Lucila está a procura de um fogo mágico, sagrado: (Imilce): ...queimou/ as minhas mãos dentro da chuva (p.88); seu fogo se acendia e se apagava ... (p.91), como a sarça ardente de Moisés, no episódio do Êxodo hebreu. Locais sagrados e rituais são, inclusive, uma constante em seus versos: quero imitar a dança/ das estrelas/ lascívia mística/ em altar sagrado... (p. 53); ó calçadas de prata, ó santuário ... (p.39); e os altares acesos/ na tragédia (p. 23).
Poder-se-ia estender, por páginas e páginas, a presença da mitologia na obra de Lucila Nogueira. Contudo, resta a vontade de se continuar a buscar, em autores desta geração, o simbolismo mitológico que a poesia, com certeza, inspira nos poetas. Os heróis, no entanto, como em diversas narrativas clássicas, nem sempre concluem com vitória seu intento: (filho de Aníbal): pobre meu pai/ que nunca mais voltou (...) nunca vi seu rosto/de prata/ na moeda em Cartagena/ ou no busto/ de bronze do Marrocos (p.102); meu pai, triste heroísmo de ser morto (p. 103). Tal desfecho faz emergir em Imilce medo da força das palavras (p. 102). Finalmente, a poeta conclui o livro com uma constatação realista que a todos entristece: Mudaram/ só os nomes dos tiranos.


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