Edifício Seabra (Seabra Building) 12.10.5
esta a revelação sobre mim mesma contida no mistério magnétivo do edifício onde estive com meu pai quando criança : uma didática européia quanto às origens e a lição "serena spectantibus hora"
LUCILA NOGUEIRA ENSINA COMO DOMAR A VIDA
CLAUDIO AGUIAR
Enigma ou mistério são palavras equivalente que levam em sua carga semântica tudo que se relacione ao desconhecido, ou, àquilo que, uma vez revelado por interferência divina, não pode ser do conhecimento do comum dos mortais.
No reino da poesia, porém, os mistérios ou enigmas são mais amplos, genéricos e sobrevivem ao sabor e ao saber da capacidade criativa do vate. É o que acontece agora com a poetisa Lucila Nogueira, neste livro, "Ilaiana", que, salvo melhor entendimento, guarda uma equilibrada proporção entre o acontecimento extraordinário - a descoberta da cidade de Elche e a construção formal de sua fatura poética em quartetos metrificados ancorados em dísticos lapidares.
Elche, cidade milenária, povoada por histórias misteriosas, rica de fatos inexplicáveis que se fundem numa espécie de encruzilhada geográfica do Mediterrâneo e a terra que esconde a passagem dos fenícios, até nossos dias ainda é um rincão onde se amalgamaram feitos reveladores das mais diversas culturais e que terminaram gerando um tempo de convivência de pessoas com traços múltiplos.
Destaque-se, apenas como exemplo, que o mistério da Dama de Elche guarda a confluência positiva de duas culturas originalmente díspares: a moura (oriental) e a ibérica (ocidental).
Por amar tanto as coisas misteriosas - expressão que uso aqui com a intenção de dizer a palavra vida - Lucila trouxe à sua poesia uma carga fortíssima de indagação, de sondagem, chegando, como foi o caso de Quasar, a alturas insondáveis.
Há, nas pessoas, um certo magnetismo pessoal que se expande como uma luminosidade, em maior ou menor intensidade não só no jeito de fazer as coisas, mas até no modo de estar no mundo. No caso de Lucila, essa intensidade parece estar sempre expandindo-se, atraindo, somando, mas também dividindo, porque o amor, em grande parte, é dar-se. Por isso, é difícil não se notar a sua presença num certo ambiente. Essa singularidade também aparece nos temas de sua poesia.
Ao ler Ilaiana, Enigmas de Elche, veio-me de imediato essa indagação: por que uma poetisa brasileira, de nossos dias, preocupar-se tanto com dimensões específicas de um mistério milenar que cerca um distante rincão da chamada "rota das palmeiras", do entorno geográfico do mundo de Alicante, em Espanha?
O livro de Lucila Nogueira, uma poetisa brasileiríssima pela vivência pernambucana de boa parte de sua vida, mas também por uma espécie de domínio formal do trato com a poesia, não se cinge apenas ao seu saber de mestra de nossas universidades. Confirma, até agora, sua preocupação com a edificação de uma obra literária que se mantém próxima, senão dentro mesmo, daquelas mais profundas raízes que explicam nossas origens culturais.
E este livro de Lucila Nogueira é, segundo, entendo um bom momento para ressaltar-se o necessário enlace entre culturas e povos historicamente irmanados. Como todos sabem, as raízes ibéricas, num sentido mais amplo de abrangências territorial e não cultural, não são exclusivas dos demais povos latino-americano, os nossos vizinhos que receberam diretamente dos espanhóis as experiências do processo de colonização a partir do final do século XV. Somos também herdeiros e usuários, às vezes inconscientemente, das mesmas origens históricas.
A busca que está fazendo a poetisa Lucila Nogueira, porém, tem uma forte razão de ser. Afirmo que ela foi até Elche levada pela história de nossas próprias origens. Ela nos descobre através de dimensões humanas e geográficas de latitudes tão distantes nos espaços que jamais imaginávamos serem nossas. Dimensões tão próximas na preservação de hábitos e enigmas nossos que só através do gesto de Lucila Nogueira, vemos que seus poemas sobre Elche também poderiam ser cantados e entendidos com os enigmas marianos que conhecemos em cada vila ou cidade brasileira.
Essa natural atitude de indagar, de procurar recordar e evocar, pesquisar e provocar debates - como agora o fazemos a partir das múltiplas sugestões que provoca a poesia de Lucila Nogueira, - podemos notar uma constante na mentalidade do brasileiro como algo herdado. Porque povo nenhum pode arvorar-se de não estar em dívida com outros. Entre nós, portanto, originou-se um modo de ser com traços marcantes de uma visão luso-hispânica. Lusa sim, mas também preponderante do lado espanhol.
"Essa vinculação histórica, na verdade, cresceu e consolidou-se nos mais diferentes aspectos das atividades do direito, das letras e das artes, do folclore etc. E daí, afirmar-se que se trata o Brasil de nação - insistiu Freyre - "duplamente hispânica: a única a se caracterizar por uma singularidade que nela reforça, em vez de prejudicar, sua condição de herdeira direta tanto de valores espanhóis como de valores portugueses. Não é assim - continua Freyre - um intruso na comunidade hispânica - que inclui Portugal tanto quanto a Espanha - porém a expressão mais completa do que nessa comunidade, é uma cultura ao mesmo tempo una e plural, quando considerada nos seus característicos sociológicos".
Essa posição, a nosso ver, clarifica bem não só o seu comportamento de escritor - a seu modo duplamente hispânico - mas o de um cientista situado nos moldes de tantos outros hispânicos que se recusaram ao método das demais comunidades da Europa. Mas não só ele. Outros, cientistas ou filósofos hispanos, têm marcado suas trajetórias por um modo de ser não sistemático no enfoque das questões abordadas. O mesmo se diga em relação aos principais escritores hispânicos e lusos, onde a obra repousa menos num rigor formal de gênero do que numa mescla inaudita de situações, como foi o caso de Miguel de Cervantes que tanto desorientou aos seus mais sensíveis intérpretes como Goethe, Thomas Mann ou Freud, homens afeitos à disciplina. Nem por isso, ao longo dos séculos, Dom Quixote deixou de ser admirado pelas mais diferentes gerações de leitores.
Agora, entre nós, com o exemplo de Lucila Nogueira, que reacende os laços dessa hispanidade através do fulgor de seus versos, ora prenhes de referências a situações locais marcadas pela relembrança, ora tocados pela carga simbólica do enigma - a arte de traduzir com palavras o indizível, vemos que as possibilidades e os caminhos de um enlace entre povos e culturas sempre se renovam.
E já que o tema é a poesia brasileira que revisita aquele mundo, para nós, aparentemente perdido, quero dizer quase numa espécie de confidência, que conheço bem Elche e seus entornos, a mesma região que Lucila Nogueira escolheu para centralizar como cenário ou pedra de toque el mistério que até hoje envolve a todos que chegam à Basílica de Santa María, onde vive a Dama de Elche.
Impressionou-me que o mito mariano encontrasse a mesma dimensão que aquele povo dedica à natureza, cultuando fortemente uma planta como a palmeira. E esse traço oriental, não sei bem por que razão, fez-me lembrar com saudade de nossas praias, de nossos coqueiros e, num tom de lamento, recordasse o nosso pouco cuidado no trato com as coisas da terra.
Também fui tomado de profunda emoção pela história misteriosa que cobre o passado da chamada Santa Moura - uma Nossa Senhora que abarca de uma só vez as virtudes do mundo árabe, então dominante, e a fé cristã ocidental.
Devo dizer que não só por isso cheguei à "ruta de las palmeiras". Desejava percorrer os caminhos que levam ao berço de um poeta que nascera ali por, em Orihuela, antigo reino de Teodomiro.
Por muitas razões, Ilaiana Enigmas de Elche, de Lucila Nogueira, é um livro de enlace, de irmandade, de relembranças, próximas ou remotas. Um livro também de advertência, naquele sentido de que, no meu caso pessoal, faz lembrar Miguel Hernández, o poeta de Orihuela, que próximo de Elche, cuidava de cabras e escrevia versos como estes:
"Tus ojos se me van de mi ojos, y vuelven después de recorrer un páramo de ausentes".
Aos quais Lucila Nogueira poderia responder:
"Meu verso é tua capa magnética que herdei das profetisas anciãs
meu verso é teu incenso enluarado botafumeiro entre constelações".
Imagino este diálogo entre Miguel Hernández e Lucila para dizer que eles, tão distantes geograficamente, na verdade, sempre estiveram próximos nos sentimentos, pois poderiam, ambos, entoam, como nós agora o fazemos, ainda que silenciosamente, o anúncio da chegada do poeta que diz:
"Llego con tres heridas: la del amor, la de la muerte, la de la vida".
Versos que Lucila poderia responder, assim:
"Escrevi recoberta de serpentes, montada em loepardos e leões"
Poetisa Lucila Nogueira, aceito a sua lição: é assim que devemos domar a vida.
Jornal do Commercio, Recife - 08/fev/1998
1 Comments:
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