A MORDERNA LÍRICA CAPA DEFINITIVA contracapa_mosaico
efeito giz de quem busca uma identidade
revelada no mosaico vitrificado
a minha bisavó ana rita de albuquerque mello
era filha de senhor de engenho em pernambuco
fugiu adolescente no dia de seu matrimônio
para casar com o advogado português josé seabra
tabelião da cidade de paudalho
onde fundou banda municipal há pouco centenária
a minha avó lucilla esperou muitos anos
que meu avô alberto nogueira tivesse condições econômicas
para se casar e ter os sete filhos entre eles minha mãe lygia
professora e estudante do primeiro curso de pós graduação em educação física no rio de janeiro
onde conheceu o meu pai português da régua alberto mattos rodrigues
que imigrara para a casa da tia arminda garcia casada e sem filhos
a qual nos anos 20 do século XX
viera à então capital do brasil onde estabelecera uma drogaria
e o meu nome ficou sendo lucila nogueira rodrigues
com os olhos verdes do meu avô ourives josé rodrigues
e o riso claro da minha avó lucilla de mello seabra
criada entre o regionalismo nordestino
e o cosmopolitismo carioca
a que chamavam "russinha" na maternidade da piedade
que morou entre botafogo/rua do lima/olinda
e em um colégio recifense de freiras italianas
aprendeu a ter disciplina e fascínio pelas artes
a que por intermédio da sua vidência onírica
descobriu as paisagens de ato-douro/minho/galiza
a meio-irmã heleni jornalista e advogada
a doença de seu pai seguida de morte
reencontrando o nome galego susabila
em sua certidão de óbito
a que foi criada alheia dentro de uma vidraça
ignorando tanta coisa sobre sua origem
mas que a poesia sustentou na tempestade
porque dizem que o poema é quase sempre
a sobrevivência desesperada de uma falta
A POESIA MÍTICA DE ZINGANARES
ADRIANE HOFFMANN
A lírica moderna é a representação de uma estrutura estética e social que pode ser observada multiplamente: pela presença do indeterminado exposto por palavras determinantes; pela expressão do complicado por meio de frases simples; pela utilização do inconexo por meio da criação de conexões, e do sem fundamento pela apresentação de argumentações; pela ausência do tempo por meio de designações temporais; pelo uso do abstrato por intermédio das forças mágicas das palavras; e pela exploração do arbitrário pelo estabelecimento do improvável no conteúdo.Essas renovações são dissonâncias da linguagem poética moderna.
Reconhecendo que o lirismo moderno corresponde a um recorte do mundo com um arranjo especial da linguagem e que as produções líricas tematizam fatos e idéias atemporalmente, é que principio a leitura da obra Zinganares, da poeta Lucila Nogueira. A autora apresenta um referencial onírico sem datas nem lugares certos, evocando um sonho milenar e harmonioso do qual participam deuses e homens.
Minha escolha do oitavo livro de Lucila Nogueira, foi realizada tendo em vista o reconhecimento de sua importância no cenário das letras brasileiras, tanto pela sua temática voltada para as raízes das nossas origens culturais, quanto pela qualidade formal de todos os poemas A relevância da autora se ratifica também pelas duas vezes que mereceu o Prêmio Literário Manuel Bandeira, nos anos de 1979 e 1987. Membro da Academia Pernambucana de Letras a autora é também participante de órgãos representativos da Literatura Brasileira e Portuguesa no país e no exterior.
Poeta, crítica, tradutora e professora, e seus poemas já foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Sua primeira obra poética publicada foi Almenara, de 1979. A autora nessa obra canta o amor, compromete-se com o social e chega atingir o plano metafísico, empenhada em cobrir as muitas dimensões que compõem o eu poético como indivíduo a um tempo solitário e solidário. Seu primeiro livro oferece ao leitor sinais de uma poesia que surge em condições de equilíbrio e maturidade, apesar de ser uma poesia estreante.Peito aberto, editado em 1983, é a segunda obra da poeta. Esse livro é um canto-denúncia que expõe os desencontros da vida e sugere como imagem global uma outra existência para os homens. Já o livro Quasar, de 1987, é um testemunho da relação da poeta com o cosmo e com a simbologia do astro, refletindo a angústia do homem, o seu desespero físico e metafísico diante das poderosas forças da natureza que ele conseguiu dominar para o seu próprio aniquilamento.Em 1990, A dama de Alicante é publicada, instituindo-se num conjunto poético que atinge tensão e força, e mantém a simplicidade dos cotidianos em suas poesias. Dimensionando uma fusão lírica de vida e sonho, de memória e mito, de realidade e símbolo, de sombra e luz, a poeta expõe sentimentos e emoções, universalizando-os. Já em O Livro do Desencanto, apresentado ao público no ano de 1991, há uma mescla de intimismo dilacerado e ressurgências misteriosas de uma linguagem aparentada com o sonho. Em Lucila Nogueira, a poesia nunca se restringe ao circunstancial, sempre o ultrapassa por meio de metáforas cheias de luminosidade, bem como na utilização de outros recursos de linguagem como anáforas, alofonias, apóstrofes, sinédoques, hipálages e sintagmas.
Em 1996, a obra Ainadamar, por versar sobre os mártires e as lendas de Granada e da América, apresenta uma trajetória épica perpassada por uma carga lírico-dramática. Os aspectos formais desse livro transitam por quarenta poemas com quadras decassílabas heróicas, por rimas não esquemáticas, pela intensa musicalidade dos versos e pelos jogos imagísticos presentes nas metáforas hiperbólicas, nas anáforas e nos paralelismos.Ilaiana – Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do nome dessa obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final. Esses dois versos que inauguram e concluem o poema completam uma estrutura cíclica regressando à matriz temática. Em 1998, o surgimento de Zinganares (Lisboa, Árion)acrescenta à produção poética de Lucila Nogueira poemas que expõem uma temática mitológica. Imilce, publicado em 2000, resgata a história de uma família marcada pela grandeza e pela traição de um herói. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura dupla, pois há a possibilidade de ler-se os versos por inteiro, como normalmente se procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.
A lírica enigmática de Lucila Nogueira, contudo, não se desvenda na sua totalidade. Daí permanecer sempre o efeito novo e encantatório de seus versos a cada leitura. A possibilidade de o sonho fazer parte do ser humano e de o resgate do passado possibilitar a compreensão dos enigmas existentes são estímulos para se modificar a existência do dia-a-dia, de navegar na lírica de Lucila Nogueira para experimentar-se como ser sagrado em aventuras sobrenaturais.
Na obra Zinganares de Lucila Nogueira o eu lírico é feminino e se autodefine humano com poderes sobrenaturais. O aspecto terreno aparece quando se lembra do passado ("Lembro de mim quando eu era menina" (XI) ) ou quando se imagina reencarnada em um corpo humano ("um dia eu voltarei eu sei um dia/estátua prisioneira de um vestido" (XIII)). O eu lírico também se descreve com poderes mentais capazes de decifrar pensamentos ("O que vejo nas almas eu escrevo/esse poder mental nasci com ele" (II)) e com poderes de incorporar deusas do passado ("Sou capaz de viver em vários planos/metáfora das deusas que vivi/eu sou o sincretismo de um mistério/que morre e ressuscita sem partir" (VIII)).
A presença do eu lírico feminino está explicitada em dezenove poemas na obra. Essa percepção é visível nas terminações verbais em primeira pessoa, no uso dos pronomes e adjetivos no feminino, nas comparações às deusas e elementos míticos do passado também no mesmo gênero, e na alusão à realidade em forma de personagem feminino. A analogia às divindades, no poema III, na terceira estrofe, expõe um eu lírico simbolizador da força produtiva feminina da natureza, em forma de deusa e de estátua, como demonstram os versos "sou face de Baal em véu de Ísis/sou estátua de cura da cidade/deusa dos cananeus e dos sidônios/o incenso queima nos meus santuários".
A evidência do sujeito lírico, por sua vez, no poema IV, está registrada na forma verbal "nascida", nos versos 1 e 17 ("Eu sou a não nascida que não morre"), forma essa que apresenta a possibilidade de o sujeito poético feminino transitar entre o sagrado e o terreno. Já no poema VI, a forma de deslocar-se para o passado e retornar ao presente, contendo em si esses dois universos, é visível nos versos 5 ("contraceno com sombras de mim mesma"), 6 ("imagem virtual de outras visões"), 9 ("sou não sou eu assim como num sonho"), e 10 ("e o filme de mim mesma continuo").
A constância da afirmativa de que o eu lírico feminino retém a tradição, o poder divinatório e a sabedoria dos antepassados, aliados à vida humana, finita e limitada, está presente também no poema VIII. Os versos da primeira estrofe ilustram bem tal poder: "Sou capaz de viver em vários planos/metáfora das deusas que vivi/eu sou o sincretismo de um mistério/que morre e ressuscita sem partir", que é reforçado pela repetição dos dois primeiros versos ao final do poema.
Mais uma ocorrência da presença do eu lírico feminino é o poema XI, que além de expor elementos do mundo real, humano, refere-se à outras vidas, ao passado. Os versos que apresentam informações da vida terrena são o 1 ("Lembro de mim quando eu era menina"), o 2 ("e completava as frases dos adultos") e o 7 ("o corpo desdobrado repetia"); já os versos que contêm aspectos ligados ao mito são o 3 ("o que ia suceder eu predizia"), o 8 ("duas imagens numa só figura") e o 15 ("vidente telepata ou médium mística").
O sujeito poético feminino, no poema XIII, afirma que, se reencarnar, voltará em forma de mulher, como expressam os versos 13, 14, 15 e 16 ("caminho nos porões dentro do abismo/entre a realidade e o fictício/um dia eu voltarei eu sei um dia/estátua prisioneira de um vestido"). Para corroborar a presença do eu lírico feminino, há a utilização de adjetivos no poema XV, nos versos 5 ("atravessei o pântano e estou viva"), 6 ("saí fortalecida da Lagoa") e 7 ("Talos vitoriosa sobre a Dédala"). E, no poema XVII, novamente há referência a aspectos femininos, como "poesia" ("a poesia em perpétua possessão"), "deusa" ("deusa que me invadiste a consciência") e "musa" ("musa de luz, enigma do chão").
A sintetização de que o eu lírico é feminino, tanto na vida trivial como nas histórias milenares experimentadas e repassadas por ele, está no poema XVIII:
(1) Sou a ordem do mundo e do destino
(2) metade humana sou metade deusa
(3) eu inventei a rota dos moinhos
(4) e o parto me alterou a consciência
(5) quero tecer um sonho de mim mesma
(6) me autohipnotizar sem mais regresso
(7) metade do meu olho é incandescente
(8) e a outra metade vive inconsciente
(9) o segredo que trago é a vida eterna
(10) entre o mundo dos mortos e dos vivos
(11) sou a visão final dos peregrinos
(12) telestério onde o culto se revela
(13) sou do Egito da Ásia e da Suméria
(14) sou a mãe milenar da ilha de Creta
(15) em Eleusis reinei por dois mil anos
(16) antes de me chamar santa Demetra
(17) – compreender as deusas do passado
(18) é celebrar a força das mulheres
A consolidação de que retém o poder de ordenar o mundo e o destino é justificado pelo sujeito poético ser "metade humana" e "metade deusa" (v.2).E, por transitar entre o "mundo dos mortos e dos vivos" (v. 10) possui consciência de seu papel social no mundo, que é o de reviver a tradição para projetar-se à modernidade, como os versos 17 e 18 confirmam: "- compreender as deusas do passado/é celebrar a força das mulheres".
Celebrando a força das mulheres através de narrações mitológicas, o eu lírico feminino, no poema XX, explicita que a poesia tem o poder sagrado de levar vida à alma das pessoas, assim como a mulher tem a capacidade de procriar. Ambas tem o dom de encantar e fecundar, de acordo com os versos 13, 14, 15, 16, 17 e 18: "e então ouvi a deusa no seu nicho:"frutificai, amai, sede fecundos/e a árvore da raça que iniciais/há de amparar-te da raiz ao cume/- Davar, faça-se a luz, Madre Poesia/alma da vida em sua plenitude".
O sujeito poético afirma que sua poesia identifica-se com uma receita para se viver melhor, que ela é um convite para o interlocutor decifrar os mistérios e poderes de deuses passados e um alerta para que o cotidiano não termine com a imaginação humana. No poema I aparece a poesia como que um receituário da poesia, quando o eu lírico diz: "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver". O convite para penetrar na poesia está no poema V: "Podes sonhar os sonhos deste livro/com pensamentos do teu coração", no VII: "benedicte malkpeblis benedicte/e o poema é a senha para entrar", e no XXXII: "ouve esta imagem que atravessa o sonho/dentro da nave antiga da poesia".
Alguns mistérios a serem desvendados estão sugeridos no poema XXVI: "Decifra esta charada do deserto/ que eu indago por vinte e quatro séculos/desvela o meu caminho e então celebra/a regressão das coisas encobertas". O alerta para que não se perca a fantasia, a magia, está nos poemas XXVIII: "recuperar a lenda o verso o sonho/a cada passo do cotidiano", e XXX: "tudo o que o mundo exige agora/é apenas um pouco de magia".
A utilização do pronome pessoal, na primeira pessoa do plural, sugere a comunhão do eu lírico com os demais seres humanos, compartilhando mesma situação e características. Os poemas em que isso ocorre são o V: "nossos corpos alteram os planetas/na mais concreta das levitações/nossos corpos são palcos de promessas/palavras desgarradas da canção"; o XXV: "Essa parte de nós que já esquecemos", "nós viemos de Rhodes e de Lesbos"; e o XXI: "Chego aqui e te encontro. Na clonagem/que fizeram de nós deusas passadas".
A poesia é citada pelo eu lírico como inspiração, entusiasmo criador, e como possibilidade de se ultrapassar os limites terrenos. A comprovação de que há referência à poesia está nos poemas: X ("roma calon romani zinganare/poesia eu vim trazer à tua espécie"); XX ("Davar, faça-se a luz, Madre Poesia/alma da vida em sua plenitude"; e XXXV ("tua imagem me traz clarividência/ó deusa anterior ó mãe sagrada/poesia é uma saudade de outra vida/batendo nos portais da eternidade").
No último poema, o XL, o sujeito poético questiona-se sobre como ele pode ser definido, se há a possibilidade de se aventurar por outras vidas e por culturas passadas. As interrogativas: "Uma pedra ou mímese involuntária?/Uma estátua ou o espelho em que flutua?/Serei eu um espelho unificado?/Serás tu a matriz da semelhança?" apontam para uma análise existencial do ser humano, desmitificando crenças, valores e a tradição da arte e da vida.
Reconhecendo-se capaz de ultrapassar os limites da realidade e remeter-se temporalmente a outras épocas, o sujeito poético afirma que repassa ao leitor a trajetória milenar da arte e sua forma de concebê-la. Nesse processo, a poesia surge como o elo entre a realidade e a sacralidade, entre o passado e o cotidiano, buscando repassar ao ser humano um receituário de viver.
O livro é composto por 40 poemas numerados em algarismos romanos. A não intitulação dessas partes prenuncia a composição de um texto único e não um agrupamento de vários textos. O modelo poético escolhido para construção das partes que compõem o livro, foi a utilização de quatro estrofes de quatro versos cada e um dístico ao final. O esquema rítmico dos versos é predominantemente decassílabo.
Essas partes constitutivas da concepção formal estão interligadas a um tipo de música que possui intensa relação com a poesia. A intrínseca musicalidade do texto poético, a plasticidade rítmica do verso decassílabo e a escolha de um modelo único para a composição das partes do livro são indícios da presença musical em Zinganares.
A formação de quartetos e um dístico ao final dos poemas sugere a constiuição de uma espécie de coda. Na música, a coda, ou cauda, é uma seção conclusiva de uma composição em que há repetições. Na obra, os dísticos quando repetem os versos iniciais de cada estrofe acentuam a circularidade do poema. Essa forma de composição pode ser denominada leitmotiv, uma técnica que associa melodia e harmonia a uma idéia. Assim, a forma reafirma a circularidade dos poemas e sugere a circularidade do tempo e da música.
Em Zinganares, livro de Lucila Nogueira publicado em Portugal, o leitmotiv expressa, além da circularidade formal e temática, as ressonâncias de estribilhos e de paralelismos das cantigas trovadorescas, que durante a Idade Média galaico-portuguesa produziam alianças entre letra e música.
Quanto à sonoridade, os versos ganham relevo pelo resultado de sua elaboração. As rimas são consoantes ("fatais/mortais" (II)), e toantes ("escrevo/vejo"(VI)). A aliteração está presente reforçando o aspecto sonoro dos poemas, como se exemplifica repetição do /s/ em "sonhando sonhos sobrenaturais" (IV) e do /m/ em "O mundo como um sonho e como um filme (XIV). A assonância aparece com maior recorrência, como se lê no poema V: " nossos corpos são palcos de promessas"; no VI: " O que escrevo não sei se é o que escrevo"; e na estrofe inteira do poema XXX: " Adivinhei as cartas do baralho/pronunciei as letras escondidas/modifiquei a lei da gravidade/desafiei todo materialismo".
Outros recursos formais presentes são o paralelismo e a anáfora. O paralelismo se manifesta em versos inteiros, como no poema I, em que os quatro quartetos iniciam com os mesmos versos: "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver" (v. 1- 2, 5 -6, 9 -10, 13 -14); ele está presente também na repetição de estruturas sintáticas, como no poema VII: "Esta palavra beira o precipício"( v. 1), "esta palavra beira o sacrifício"(v.5).Em meio ao paralelismo sintático, a anáfora se exemplifica no poema XXI, com a repetição do verbo "ser" nos versos: 11 ("sou a memória do teu mimetismo"), 12 ("sou a saudade anônima da pele"), 13 ("sou instrumento de teu desafio") e 14 ("sou testemunha do teu pranto eterno"); no poema XXXVI, a anáfora está expressa com o termo "pelo", nos versos 13 ("pelo transe da bola de cristal"), 14 ("pelo vôo do pássaro nocturno"), 15 ("pelo anel solitário no alfabeto") e 16 ("pelo canto da fonte dos murmúrios"); e no poema XXXVII, com o advérbio de lugar "eis", nos versos 13 ("eis o chão terminal da ultrapassagem"), 14 ("eis a vida em retorno que buscavas"), 15 ("eis a ancestralidade que sonhavas") e 16 (‘eis o rosto que olhavas do outro lado"). A aparição da conjunção "nem", no poema XXXII, nos versos 9 ("nem Sumer nem Acad nem Babilônia"), 10 ("nem Tiro nem Cartago ou Samaria") e 11 ("nem Tebas Mênfis ou Alexandria"), demonstra que o polissíndeto também é um recurso utilizado pela poeta.
O encadeamento dos versos é sugerido pela sintaxe: "e aqueles que sorriam pelas costas/recitarão meus versos sem os ler" ( I ) e pela omissão dos sinais de pontuação: "chego aqui e te encontro. Chego exausta/replicante de ti sigo os teus passos/ausentes suplicando a velha forma/replicante de mim que me embaraça" ( XXXI). A ausência completa de pontuação só não ocorre nos poemas XVI, XVII, XX, XXI, XXII, XXIII, XXIX, XXX, XXXI, XXXIII, XXXVI, XXXIX, XL. Os dois pontos, a vírgula, o ponto final e o ponto de interrogação são os sinais utilizados.
No conjunto das figuras de estilo, a que mais se destaca nos poemas é a antítese. No poema VI, o eu lírico questiona contraditoriamente sua originalidade : "sou não sou assim como num sonho/são não são as imagens do absurdo/tão reais e irreais como este mundo/enquanto eu as projeto as construo/enquanto eu as aumento as diminuo/o que escrevo não sei se é o que escrevo/ou o que alguém em silêncio confessou"; em outros momentos, refere a dualidade antitética existencial: "vida e morte nos fazem delirar"(VII), "que morre e ressuscita sem partir" (VIII), "vida e morte no vão desta janela" (IX); também afirma a improvável aproximação de dimensões: "surjo e desapareço como o fogo/posso entrar e sair da vida humana"(XXII); ou caracteriza a ambigüidade do plano corporal e espiritual: "metade clara de teu lado escuro"( XXXIII).
A utilização dos verbos em quase todos os poemas dá-se no tempo presente, o que evidencia a historicidade da temática, na qual o eu lírico transita. A incidência de verbos no pretérito perfeito do indicativo e do subjuntivo expressa ações realizadas em outras dimensões: "enlouqueci/ suicidei/ inventei/ confundi/ atravessei/ vaguei/ venci" (XV); "Cheguei/vim" (XXI); "adivinhei/ pronunciei/ modifiquei/ desafiei/ caminhei/ atravessei/ adormeci" (XXX): "gritasses/ atravessasses/ retornasse/ emparedasse/ trouxesse" (XXXVII). As poucas aparições do verbo no tempo futuro denunciam o tom premonitório da poesia. Os poemas I: "Falarão meus poemas pelas ruas/recitarão meus versos sem os ler/dirão que era poesia e não loucura/perguntarão por que vivi tão pouco"; e XXXVIII: "Se não houver a morte que inventamos/e se formos projetos de outro plano/e se eu for essa mesma do outro lado/então serei somente desengano"; os dois poemas referidos expressam que a poesia transita pelo presente-eterno e que todos os seres, independente de épocas, entram em contato com ela.
A composição formal da obra apresenta um padrão de elaboração clássica, que eleva a qualidade dos poemas a um patamar de extrema nobreza. O uso de rimas, a exploração de aliterações e assonâncias, a escassez de pontuação, a presença de figuras de estilo, aliadas à regularidade dos versos decassílabos e aos quartetos e aos dísticos, identificam-se com uma arte poética sacralizada e, por isso mesmo, coerente com uma temática do livro, que apresenta a poesia como imortal. A temática da imortalidade da arte está associada ao fato de o eu lírico migrar pelo passado histórico e pelas dimensões, resgatando a magia, o mistério e os enigmas da existência. Assim, também, a forma elaborada e sagrada dos versos que atravessam os séculos da história humana.
Os poemas de Lucila Nogueira expõem um eu lírico com poderes sobrenaturais que tem possibilidade de transitar pelas dimensões terrena e sagradas, que apresenta permanência eterna, que consegue penetrar na mente de seres humanos e que é capaz de prever os rumos da humanidade. Dessa forma esse eu lírico afirma possuir força e coragem adquiridos em suas transposições milenares. A volta às origens, ao tempo mitológico, é uma maneira de buscar respostas para os enigmas antigos e os contemporâneos.
Repassando a idéia de que a arte poética é inerente ao ser humano, que ela permanece no tempo e nas pessoas, o poema I vaticina a vida para a poesia do eu lírico, mesmo nos indivíduos que a desconsideravam: eles "recitarão meus versos sem os ler" (v.4). O uso de verbos no tempo futuro, reiteradamente, intensifica a certeza da previsão: todas as pessoas entenderão e guardarão a poesia. Elas "falarão" (v.1, 5, 9 e13) ", recitarão" (v.4 e 18), "dirão" (v.7 e 11) e "perguntarão" (v.15). A reiteração paralelística de "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver", no início dos quatro quartetos (versos 1, 5, 9 e 13) reafirma a convicção da poesia como permanência intemporal, por ser como uma verdade sagrada para a vida ("receita de viver"). Ela estará nas "ruas" (cidade) e também na memória, no coração ("de cor") de todos:
I
(1) Falarão meus poemas pelas ruas
(2) de cor como receita de viver
(3) e aqueles que sorriam pelas costas
(4) recitarão meus versos sem os ler
(5) Falarão meus poemas pelas ruas
(6) de cor como receita de viver
(7) dirão que fui um mar misterioso
(8) onde quem navegou não esqueceu
(9) Falarão meus poemas pelas ruas
(10) de cor como receita de viver
(11) dirão que era poesia e não loucura
(12) meu jeito de sonhar todos vocês
(13) Falarão meus poemas pelas ruas
(14) de cor como receita de viver
(15) perguntarão por que vivi tão pouco
(16) sem dar-lhes tempo de me perceber
(17) - e aqueles que sorriam pelas costas
(18) recitarão meus versos sem os ler
Na descoberta "a posteriori" do valor da poesia, as pessoas buscarão a imagem do "mar", para aludir à obscuridade não compreendida: "dirão que fui um mar misterioso"/onde quem navegou não esqueceu" (v.7). Uma das possibilidades de interpretação simbólica do mar é aceitá-lo como um lugar de nascimentos, de transformações e de renascimentos. Assim, tudo sai do mar e tudo retorna a ele.
Nesse poema, o eu lírico prenuncia que todas as pessoas irão contactar com seus versos por eles representarem o sentido para a vida, por eles dizerem o que todos os seres humanos diriam por estar vivos. Como as águas do mar, onde tudo começa e termina, imagem de unidade vital cíclica permanente, os poemas farão parte da vida humana futura, como única linguagem verdadeira dos homens.
A "receita de viver" sugerida no poema I, com a garantia de ser inesquecível, é especificada nos demais poemas da obra. O eu lírico vai detalhando o conteúdo presente na receita, como se pode analisar no poema II:
II
(1) O que vejo nas almas eu escrevo
(2) tua hipnose é minha profissão
(3) teu amor e teu ódio eu converto
(4) em figuras e fábulas e sons
(5) posso te dominar pela magia
(6) devolver tua lenda inicial
(7) posso tirar um sonho de tua argila
(8) e fazê-lo mover-se à luz do sol
(9) o que vejo nas almas eu escrevo
(10) sob a forma de enigmas fatais
(11) com adivinhações inacessíveis
(12) à lógica empirista dos mortais
(13) esse poder mental nasci com ele
(14) já não oculto a sua combustão
(15) esse poder mental nasci com ele
(16) desculpa-me de ler teu coração
(17) - o que vejo nas almas eu escrevo
(18) tua hipnose é minha profissão
A matéria do poema é o resultado em forma de escrita da percepção da alma dos outros: "O que vejo nas almas eu escrevo"; este verso inicial da primeira estrofe se repete alternadamente, aparecendo também no começo da terceira e quinta estrofes (versos 1, 9 e 17). A possibilidade de converter sentimentos opostos ("amor" e "ódio") em figuras, fábulas e sons é realizável pelo eu lírico porque o mesmo afirma já ter nascido com esse poder mental.
Adjetivos como "fatais" e "inacessíveis", ligados a expressões como "enigmas" e "adivinhações" sugerem o mistério que envolve a situação existencial humana e a decifração ("hipnose", "magia", "adivinhações", "poder mental") dessa obscuridade que a linguagem poética ousa tentar. A sacralização da existência é evidente, porque só com recursos extraordinários é possível devolver ao ser sua "lenda inicial", ou seja, sua história sagrada, mítica. O eu lírico, mitificado como a própria poesia, mostra a diferença entre os poetas e os mortais. Ele domina pela magia, ele materializa e dá vida ao sonho, ele se comunica com as almas pela hipnose é capaz de ler o alheio coração. Esse "poder mental", diferenciador, é que o singulariza.
No poema III, a alusão aos deuses e aos locais sagrados evidencia os elementos que são referendados pelo eu lírico na composição dos versos. Reitera-se que o contato entre os humanos e o sujeito poético é feito pela mente, como se pode ver na repetição da idéia, nos versos 2 e 18:
III
(1) Como os caldeus eu leio a tua mente
(2) e entendo a tua alma sem falar
(3) eu digo o que esqueceste para sempre
(4) o que nunca te ocorre perguntar
(5) espelhos minha imagem multiplicam
(6) clone golem perdido nos espaços
(7) e a luz atoniana dos meus discos
(8) prossegue a rotação dos meus oráculos
(9) sou face de Baal em véu de Ísis
(10) sou estátua de cura da cidade
(11) deusa dos cananeus e dos sidônios
(12) o incenso queima nos meus santuários
(13) escuta este meu verso em fogo vivo
(14) onda de rádio num lugar sagrado
(15) as vibrações eletromagnéticas
(16) guiam constelações sempre que falo
(17) - como os caldeus eu leio a tua mente
(18) e sem falar entendo a tua alma
A indicação de três povos: caldeus, cananeus e sidônios sugere a migração geográfica e temporal possível de ser realizada pelos poetas. Com esse poder, é possível resgatar qualquer acontecimento e/ou crença que os mortais não perpetuaram. Os advérbios de tempo "sempre" e "nunca", nos versos 3 e 4 reforçam isso. A demonstração de que o eu lírico pode estar representado de várias maneiras manifesta-se nos versos 5, 7, 9 e 10 na forma de "imagem", "disco" (luminoso), "deusa" e "estátua". Tudo para conseguir entender a existência que é mítica, penetrando na mente humana.
Segundo Mircea Eliade, essa possibilidade de histórias sagradas relatarem acontecimentos ocorridos no passado, configura a matéria mítica, como no poema III está sugerido.
O eu lírico, além de se autodefinir com capacidade mental de traduzir sentimentos humanos e de transpor a matéria, caracteriza-se como imortal no poema IV:
IV
(1) Eu sou a não nascida que não morre
(2) sonhando sonhos sobrenaturais
(3) daimon sobrevivente nos relógios
(4) da quarta dimensão querendo paz
(5) consciência alterada do invisível
(6) cumprindo o seu papel premonitório
(7) a revelar os mundos esquecidos
(8) de um texto concebido em hipnose
(9) trago o poder perdido nas pirâmides
(10) do México e do Egito e nos degraus
(11) de cada zigurate eu entro em transe
(12) para curar doentes terminais
(13) eu sou a mais antiga e a mais moderna
(14) narração de teu rumo sobre a terra
(15) recital visionário de crateras
(16) revelação que arrasta o que revela
(17) - eu sou a não nascida que não morre
(18) sonhando sonhos sobrenaturais
A primeira estrofe confirma a condição eterna do eu lírico, por ele não nascer e nem morrer como acontece com os seres humanos. Configurando-se como daimon, espírito, divindade capaz de ultrapassar dimensões, e representando fantasticamente sonhos, o eu lírico traz à consciência o que era invisível e o que estava esquecido. Os versos nº 5: "consciência alterada do invisível", e nº 7: "a revelar os mundos esquecidos", configuram o estado de ânimo alterado do sujeito poético no momento da criação e o alvo temático de sua poesia.
Esse estado pode ser como uma hipnose, um transe ("de um texto concebido em hipnose" – v.8), sendo o eu lírico um sujeito mítico atemporal que narra a verdade do outro ("narração de teu rumo sobre a terra" - v. 14) como um recital vulcânico ("recital visionário de cratera" - v. 15), que é sinônimo de epifania ( " revelação que arrasta o que revela" - v. 16). A aliteração da letra /s/ em "sonhando sonhos sobrenaturais", nos versos 2 e 18, sugere o som do vento, do passar do tempo, comprovando a transposição de planos e a constância da poesia entre os mortais.
A obscuridade da gênese criadora, evidenciando o território mítico da poesia, manifesta-se claramente ao longo dos dezoito versos do poema VI:
VI
(1) O que escrevo não sei se é o que escrevo
(2) ou o que alguém em silêncio confessou
(3) o que eu vejo não sei se é o que vejo
(4) ou o que o espelho jogou fora do tom
(5) contraceno com sombras de mim mesma
(6) imagem virtual de outras visões
(7) perpetuo as imagens do modelo
(8) transgenia em telômero de chão
(9) sou não sou eu assim como num sonho
(10) e o filme de mim mesma continuo
(11) são não são as imagens do absurdo
(12) tão reais e irreais como este mundo
(13) enquanto eu as projeto eu as construo
(14) enquanto eu as aumento as diminuo
(15) o que vejo não sei se é o que vejo
(16) ou o que o espelho jogou fora do tom
(17) - o que escrevo não sei se é o que escrevo
ou o que alguém em silêncio confessou
A presença da conjunção coordenativa alternativa "ou", nos versos 2 e 4, e sua repetição por mais duas vezes, retoma a idéia de que a criação poética é a representação de alguma coisa já existente. Dessa forma, o eu lírico apresenta incertezas sobre a procedência de sua escrita e de sua visão.
A utilização das idéias antitéticas: "sou não sou eu assim como num sonho" (v.9), "são não são as imagens do absurdo" (v.11), "tão reais e irreais como este mundo" (v.12), "enquanto eu as projeto eu as construo" (v.13), "enquanto eu as aumento as diminuo" (v.14), retoma o poder mental que o eu lírico diz possuir e por isso duvida se o que vê e escreve são imagens criadas por ele ou percepções já existentes de outras mentes ou níveis. O verbo "perpetuar", em "perpetua as imagens do modelo" (v.7), alude à eternização do ato criador através da poesia, no tempo.
O poema VIII, além de referir espaços geográficos e ações simbólicas incorporadas pelo sujeito poético, alude ao termo "mistério"(v.4), como sendo o conjunto de definições para o eu lírico. O texto diz:
VIII
(1) Sou capaz de viver em vários planos
(2) metáfora das deusas que vivi
(3) eu sou o sincretismo de um mistério
(4) que morre e ressuscita sem partir
(5) sacerdotes caldeus deram-me um livro
(6) na cidade de Elo e eu compreendi
(7) essa doutrina que não foi escrita
(8) precursora dos sábios de Saís
(9) quando as águas baixaram sobre a ilha
(10) os guanches e os atlantes revivi
(11) as palmas no tablado as ervas mágicas
(12) a tourada o flamenco o chafariz
(13) meu observatório iniciático
(14) exílio circular dentro de mim
(15) eu decifrei sinais previ eclipses
(16) fórmulas rituais reconheci
(17) - sou capaz de viver em vários planos
metáfora das deusas que vivi
A convicção da capacidade do eu lírico de transpor-se por diferentes dimensões está definida no verso 1: "Sou capaz de viver em vários planos", que é repetida no verso 17. Essa declaração se confirma na segunda, terceira e quarta estrofes, quando se resgatam civilizações, tradições e mitos, povoações milenares como "sacerdotes caldeus" (v.5), "sábios de Saís" (v.8), "ganches" (v.8) e "atlantes" (v.8), tudo incorporado no eu lírico.
O fascínio que a poesia exerce sobre as pessoas é trazido dos espetáculos e/ou rituais realizados no passado. Os elementos "palmas"/ "tablado"/ "ervas mágicas" (v.11) e "tourada"/ "flamenco"/ "chafariz’ (v.12) sugerem a representação de idéias, crenças, modos de vida desses povos e que estão eternizados na criação poética moderna. As ações de decifrar, prever e reconhecer citadas pelo eu lírico nos versos 15 ("eu decifrei sinais previ eclipses") e 16 ("fórmulas rituais reconheci"), confirmam a sua capacidade mítica de transitar pelos planos terreno e espiritual.
Metaforizar-se em deusas, exilar-se em si mesma e compreender uma doutrina não conceituada são formas utilizadas pelo eu lírico para perpetuar o mistério que envolve o ato de criação da poesia e seu efeito encantatório no ser humano. O convite feito ao interlocutor para decifrar os enigmas presentes na arte e na vida, e para que o ser humano imortalize a poesia está nos poemas VII, X, XXXVI e XXIX.
O poema VII confirma, insistentemente, que existe uma maneira de as pessoas entrarem em contato com histórias de deuses e com o poder exercido por objetos míticos: ler poemas e decifrá-los. A repetição dessa idéia está nos versos 4, 8, 12, 16 e 18:
VII
(1) Esta palavra beira o precipício
(2) mas ninguém solta o livro sobre o altar
(3) benedicte malkpeblis benedicte
(4) e o poema é a senha para entrar
(5) esta palavra beira o sacrifício
(6) mas dá disposição para voar
(7) uso divinatório de um zodíaco
(8) e o poema é a senha para entrar
(9) estas ervas secretas tem feitiço
(10) vida e morte nos fazem delirar
(11) benedicte malkpeblis benedicte
(12) e o poema é a senha para entrar
(13) narcótico da lenda do destino
(14) é o magma dos místicos do mar
(15) esta palavra beira o hipnotismo
(16) e o poema é a senha para entrar
(17) - benedicte malkpeblis benedicte
e o poema é a senha para entrar
A utilização dos termos "precipício", "sacrifício" e "hipnotismo", nos versos 1 ("Esta palavra beira um precipício"), 5 ("esta palavra beira o sacrifício") e 15 ("esta palavra beira o hipnotismo") sugere o empenho que o leitor de poesia deve fazer para alcançar uma espécie de êxtase de compreensão do incompreensível que a "palavra" poética permite. A obscuridade do poema não aponta para leituras unilaterais e definitivas; mesmo assim a arte fascina e não é posta de lado, como os versos 2 e 6 indicam, respectivamente: " mas ninguém solta o livro sobre o altar" e "mas dá disposição para voar". A conjunção coordenativa adversativa "mas" comprova que o fascínio atrai.
Além de encantar as pessoas e instigá-las ao sonho, o poema seduz pelo mistério que possui e pela dualidade que sugere. Isso é identificado nos versos 9 ( "estas ervas secretas tem feitiço") e 10 ("vida e morte nos fazem delirar"). A presença reiterada de um verso em um idioma não conhecido retoma o fascínio, o mistério e a magia que a poesia exerce sobre os humanos. A tradução de "benedicte malkpeblis benedicte" (v.3, 11 e 17) é a possibilidade de o leitor transpor para a arte seus sonhos, seus desejos. Esse contato ao mesmo tempo que imortaliza o poema, também aproxima a arte ao cotidiano, à vida humana.
A palavra, entretanto, é o meio para o conhecimento do que não se dá a conhecer, e o poema o lugar onde ela se ilumina ("a senha").
O poema X também apresenta por três vezes um verso em outro idioma: " roma calon romani zinganare" (v. 3,7 e 17). Assim como no poema VII, nesse há o convite do eu lírico para o interlocutor decifrar o alfabeto não conhecido através da realização de ações sugeridas em vários versos:
X
(1) Eu sinto o sentimento que tu sentes
(2) as letras do teu sonho eu interpreto
(3) roma calon romani zinganare
(4) vem recitar comigo este alfabeto
(5) vem passear no fio da navalha
(6) desamarrar as linhas do universo
(7) roma calon romani zinganare
(8) malabarista em casa de trapézio
(9) entende a senha inscrita nas muralhas
(10) engolidor de fogo sobre o teto
(11) vem descobrir segredos de batalha
(12) vem dominar a voz de teu reflexo
(13) sobe da gruta na escada rolante
(14) tira dos pés os trilhos que te ferem
(15) que a invasão das serpentes legendárias
(16) nas ilhas de Ofiusa é tua prece
(17) - roma calon romani zinganare
poesia eu vim trazer à tua espécie
O grande apelo dos quarenta poemas de Zinganares é, portanto, que os homens busquem conhecer os modelos exemplares de seres humanos e de entidades sobrenaturais para compor o seu próprio modelo terreno. Tal resgate só é viável através do devaneio, do deleite poético, pois a reunião da matéria do espírito só terá quem abrir o "livro" e deixar-se iluminar pelos versos de Lucila Nogueira.
Lucila Nogueira, que é certamente uma poeta comprometida com sua consciência existencial e com a perpetuação do ato poético. E como se não bastasse o próprio comprometimento, sua poesia convida as pessoas a participarem de uma "receita de viver", a qual se confunde com a imersão, pela leitura, no mundo de uma arte sugestiva, enigmática e mítica. De seus poemas fica a certeza de que há um aspecto cíclico, permanente e mágico da existência, perceptível pela arte. Zinganares concilia tradição e modernidade, passado e presente, matéria e espírito, de maneira harmoniosa e instigante, sendo uma obra que enobrece as letras brasileiras, e uma contribuição singular para o cenário da poesia lírica moderna.
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