POESIA EM MEDELLIN DE LUCILA NOGUEIRA
PARA REINVENTAR A ESTÉTICA DO DESEJO :POESIA EM MEDELLIN
André Cervinskis*
http://www.youtube.com/watch?v=0ghblS2DTL4
Quando pensamos que Lucila Nogueira já nos presenteou com todas as suas performances poéticas, surge sua mais recente obra, Poesia em Medellín. Ela o compôs para cumprir as exigências de sua participação no XVI Festival internacional de Poesia de Medellín, organizado pela revista de poesia colombiana Prometeo. Como bem lembrou a introdução do seu livro, este festival é o maior do mundo na categoria poesia e já levou à cidade nomes importantes contemporâneos, como o Prêmio Nobel de Literatura 1986 Wole Soyinka(Nigéria),Ernesto Cardenal e Gioconda Beli (Nicarágua), Marisol Quiroga (Bolívia), Fabian Casas (Argentina), Jorge Cocom Pech (Nação Maya, México). Lucila Nogueira foi a primeira poeta mulher a ser convidada para o festival representando nosso país.
O livro, de 65 páginas, capa vermelha, com um rosto sensual da autora, é uma coletânea de poemas eróticos de sua carreira, com tradução para o espanhol pelo poeta colombiano Elkin Obregón, tradutor de Nélida Piñon e Rubem Fonseca, entre outros autores brasileiros. Há, contudo, um poema inédito, que eu consideraria o principal de sua obra, pela especial eficácia na abordagem do tema erótico, intitulado: Mas não demores tanto. Ele nos faz passear pelo lirismo nogueiriano com versos bastante ousados: fecha os olhos e pensa no que quiseres/ enquanto as mãos e as bocas cumprem roteiros de miragens desérticas (...).
Mas não somente nesse poema a força do erótico se revela intensamente; em outros , lê-se: eu sou somente o espasmo de teu corpo (...) sou ímpeto solar e esse exagero/ de carne em transe que te aplaca os nervos. (Identidade) (...) talássico e mimético gigante/ atravessando a sede em minhas pernas (Fogo de Santelmo I). (...) Em minha pele ávida de feras/ em meus canais de fogo alucinante/ e mergulhando e flutuando e sempre/ indo e voltando e logo regressando/ teus pêlos minha flora num perplexo/ contínuo inaugurar de força estranha... (Fogo de Santelmo – II); seios queimando sob o odor da chuva (Nave no dilúvio).
Etimologicamente, erotismo deriva de Eros, o deus do amor. Segundo os estudiosos modernos, o erotismo é a espiritualização da carne e sua conversão em cultura - logo, a transcendência é a sua dimensão natural.Veja-se que erotismo em literatura não é um tema novo. Existe desde a antiguidade. Na Grécia, Platão, em seu O Banquete, o celebrou além dos limites da heterossexualidade. Aristófanes lega ao futuro comédias de extrema licenciosidade. As peças de sátiros, escritas por Ésquilo, Sófocles e Aristóteles, como complementos de suas tragédias, também eram extremamente livres em matéria sexual. Uma das lendas mais populares entre os gregos era a de que, certa noite, Hércules teria mantido relações sexuais satisfatórias com 49 das 50 filhas de Téspius, Rei da Beócia. Em Roma, o sexo representava papel essencial não só para Ovídio. Está presente também nas obras de Marcial, Juvenal, Ausone, Suetônio, Petrônio e Horácio, além de Apuleio, autor de O Asno de Ouro, uma das maiores novelas picarescas de todos os tempos. Considerado como o predecessor do romance moderno. Satiricon, de Petronius, foi escrito nos primeiros anos da era cristã, durante o governo do imperador Nero. A obra descreve as andanças de dois jovens na alta sociedade da época. Orgias, prostituição masculina, pederastia, incestos, homossexualidade, são alguns dos temas abordados por Petronius. Dezoito séculos depois, o romano Fellini faria um belo filme com essa história.
Condenados ou consagrados, os escritores, especialmente poetas, sempre transgrediram as regras sociais do amor burguês bem comportado, com desejos velados. Os autores contemporâneos, tentando surpreender o leitor, por vezes chegam a vulgarizar seus versos. Não acontece isso, porém, com Lucila Nogueira. Como afirma Floriano Martins, em comentário à obra da autora (Nogueira, 2006, contracapa): “o jogo que faz entre corpos visíveis e invisíveis dá ao erotismo da poesia de Lucila Nogueira uma alta voltagem que o aproxima do plano mítico sem, contudo, perder relação intensa com o carnal, com a realidade que corresponde a cada desejo, em vertigem e desalento. Trata-se, portanto, de uma poesia enriquecida por essa compreensão do mito como algo arraigado à nossa vida, e cuja perspectiva erótica o torna ainda mais fascinante”.
Nesse sentido, percebemos que seus versos procuram, sim, no corpo um canal para a consumação do desejo, mas numa estética lírica superior: O corpo – dizem – já não será o mesmo,/ desesperadamente eu te desejo/ enquanto navego rochas subterrâneas/ à beira da consciência humana. (Mas não demores tanto). Sérgio, eu te amo, exausta e obsessiva/ sobre o teu corpo em êxtase vencida. (O espírito das fadas). Por vezes, o erotismo é velado: (...) o monstro me arrebata novamente/terrível seu olhar sobre o meu corpo./ Em mim sempre se instala a sua sede/e eu resto umedecida altiva e mansa (O monstro arrebata novamente). A autora explicita nalguns trechos sem receios, seu desejo violento: no meu corpo invisível tu derramas/ geleiras, bulevares e castelos./ e a multidão latino-americana/ explode a sua fome no meu sexo./ Prepara um orgasmo eterno em que se altere/ a rotação das gerações em leste. (Ando invisível pelo apartamento). Desenvolve um erotismo elegante: sou a rudeza que te imobiliza/e essa doçura armada de improviso... (Identidade). O erotismo às vezes se revela pleno: enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios...; e as gárgulas de Notre Dame/ contornaram os mamilos/ como breves e clandestinos fogos-fátuos (Mas não demores tanto). Posições e práticas sexuais pouco convencionais não causam falsos pudores na autora: quando tua boca recobrir o seio... (Mas não demores tanto); deitada estou de bruços/ à flor dos aquedutos (Ó homens doces); você me quer de costas/ por dentro do edredon (Desespero blue). Mas às vezes se esconde numa máscara de timidez: todos eram demais e não sabiam/ mas quando tu me pegaste forte eu me surpreendi/ tímida/ e até hoje estou fugindo entre palmeiras/ pelas estradas líquidas do vinho e do néon (Mas não demores tanto). Temos aqui um efeito metafórico interessante: se a palmeira é exuberante por natureza, também pode servir para esconder. O néon é usado para nos fazer enxergar objetos em noites escuras, mas somente o que nos interessa revelar. Como o amor de adolescente: ele fechou a porta/ da casa de Granito/ o banho de tonel/ no fundo do quintal/ guardou minha nudez/ pelo lado de fora... (Se pode até ser dois); enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância/ que uma água subitamente morna quase apagou. (Mas não demores tanto).
A voz lírica de Lucila não renuncia ao papel de amante: tudo o que eu aprendi foi só para enlouquecer-te/ tira logo do meu corpo a túnica transparente (Poema X - de Refletores); porque eu sei satisfazer a tua carne/ mesmo assim aérea na alucinação (Despedaça-me); não sabem que sou santa/ querem dormir comigo e ter circuitos/ querem tremer nos ângulos agudos/ não sabem que sou santa (Poema IV - de Refletores). Reconhece, porém, suas fragilidades e o que passou para chegar a essa liberdade: sou a menina frágil que resiste/ e a que conquista o mundo, mas é triste/ e esse peito doente, estiolado/ a suportar o mundo em intervalos (Identidade). Num trecho do poema Mas não demores tanto, a autora trabalha com profunda sensibilidade o tema amor e morte; a blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia/ assassinada numa em campo de concentração. (...) A blusa de cetim/ deixa entrever a parte morta da carne branca/ sob a luz do globo fosforescente. Explicita-se, nessa obra, uma delgada sensualidade, com recato e o pudor de outras épocas: e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro/ tem ainda um oceano de lantejoulas/ refletindo a vibração da pele.
Interessante como a autora consegue trabalhar o erotismo em temas pouco convencionais, como a doença e a morte. Para Lucila, mesmo passiva, a mulher pode mostrar-se sensual, como nesse poema cujo título homenageia um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, Fale com ela: mulher que nunca fala/ isso é afrodisíaco/ mulher que não se mexe/ e s e entrega passiva/ mulher que está em coma/ pode voltar á vida/ desde que alguém lhe fale/ e queira ser ouvida. Num outro trecho do mesmo poema, o perigo inspira jogos sensuais: A trapezista continuará dormindo/ completamente nua/ na jaula dos leões.
Algumas temáticas recorrentes em outros livros não escapam dessa incursão literária pelo erotismo. O interculturalismo é um deles: o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada/ desde os coqueiros do Recife/ até os verdes pinheiros galegos/ que deram sombra aos romances de meus bisavós; (...) para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro (Mas não demores tanto). Não custa lembrar a origem luso-galego-brasileira de Nogueira, bem como suas incursões familiares, inclusive literárias, por outras culturas, como a escandinava (Estocolmo, 2004). A presença mitológica em sua obra não poderia prescindir o deus greco-romano do vinho e uma das festas em que é invocado, o carnaval: ele era como a voz rouca de Dioniso, fazendo soar as teclas do piano austríaco/ abandonado na passarela vermelha/ de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus (Mas não demores tanto). Seres lendários povoam eroticamente seus versos: mas eu vi se namorando/ os centauros e as sereias/ fazendo um amor na praia/ bem ao gosto dos mortais (Disse-me um dia Clarice). O esoterismo transfigura-se num verso cabalístico: e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços/ até o sol secar as sete saias/ tiradas ao som de sete violinos/ durante as sete noites de encantação (Mas não demores tanto).
O gozo aparece na obra de Lucila de forma contundente, revirando os elementos da natureza: dragão invisível/ língua demoníaca/ união clandestina/ avesso encantamento/ abismo vulcânico/ onde a partitura se desfez em notas a pauta (Mas não demores tanto); ventosa universal nadando leve/ o céu se precipita do meu sexo/ entranha nervo córtex voltagem/ arrasto os horizontes da cidade (Decisão). No momento do orgasmo, sente-se a condição divina que invade a todos: Concha dilacerada, espada bruta (...) sou mais forte que os deuses nessa hora (Nave do dilúvio). A autora sabe que o amor não aguarda os amanhãs: Tudo agora se tornou tão urgente; mas não demores tanto (Mas não demores tanto). Em diversos trechos,a narradora poética de Lucila apresenta sua ânsia por amar: gosto de amar assim avidamente/ fogueira terremoto tempestade... (Decisão); (...) e sou febre incessante, obsessiva/ numa ansiedade para além da vida (Identidade). Mas se deve fugir aos estereótipos: porque naquele tempo/ o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente indu (Mas não demores tanto).
Focando no tema do desejo, a autora nos leva a concluir que o amor se constrói com cumplicidade e amadurecimento: descobre quanto dura o seu fascínio/ o ímpeto sagrado de tua pele/ pois o amor, se é senhor, não sai vencido/ o sangue é breve, a morte muito longa/ e o futuro uma carta do destino (Tentação); que amar é arte/ de se fazer presente/ e tudo aquilo que precisamos/ é de poesia/ loucura e êxtase/ no ato heróico de reabrir as portas/ da carne mansa que se esquivou. (Mas não tardes tanto).
O amor é urgente. A poesia é urgente. Em Medellín como em Recife, faz-se necessário reinventar a estética do desejo.
FONTES
ALEXANDRIAN: Sade ou o Terror Sexual. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed.
DUEHREIN, E.: El Marques de Sade. Su Tempo. Su Vida. Su Obra. Madrid. s/d.
MORAES, E.: Sade: O Crime entre Amigos. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 245 - 254.
NOGUEIRA, Lucila. Poesia em Medellín. Tradução para o espanhol: Elkin Obregón. Recife: Ed. do autor, 2006.
_______________. Estocolmo. Recife: Ed. Livrorápido, 2004, 2ª edição.
PRADO JR., B.: A Filosofia das Luzes e as Metamorfoses do Espírito Libertino. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 43 - 58.
TROUSSON, R.: Romance e Libertinagem no séc. XVII na França. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 165 - 182
http://camanarede.terra.com.br/literatura/literatura_05.htm
http://mulher.sapo.pt/J43/251596.html
* ANDRÉ CERVINSKIS é escritor e ensaísta
André Cervinskis*
http://www.youtube.com/watch?v=0ghblS2DTL4
Quando pensamos que Lucila Nogueira já nos presenteou com todas as suas performances poéticas, surge sua mais recente obra, Poesia em Medellín. Ela o compôs para cumprir as exigências de sua participação no XVI Festival internacional de Poesia de Medellín, organizado pela revista de poesia colombiana Prometeo. Como bem lembrou a introdução do seu livro, este festival é o maior do mundo na categoria poesia e já levou à cidade nomes importantes contemporâneos, como o Prêmio Nobel de Literatura 1986 Wole Soyinka(Nigéria),Ernesto Cardenal e Gioconda Beli (Nicarágua), Marisol Quiroga (Bolívia), Fabian Casas (Argentina), Jorge Cocom Pech (Nação Maya, México). Lucila Nogueira foi a primeira poeta mulher a ser convidada para o festival representando nosso país.
O livro, de 65 páginas, capa vermelha, com um rosto sensual da autora, é uma coletânea de poemas eróticos de sua carreira, com tradução para o espanhol pelo poeta colombiano Elkin Obregón, tradutor de Nélida Piñon e Rubem Fonseca, entre outros autores brasileiros. Há, contudo, um poema inédito, que eu consideraria o principal de sua obra, pela especial eficácia na abordagem do tema erótico, intitulado: Mas não demores tanto. Ele nos faz passear pelo lirismo nogueiriano com versos bastante ousados: fecha os olhos e pensa no que quiseres/ enquanto as mãos e as bocas cumprem roteiros de miragens desérticas (...).
Mas não somente nesse poema a força do erótico se revela intensamente; em outros , lê-se: eu sou somente o espasmo de teu corpo (...) sou ímpeto solar e esse exagero/ de carne em transe que te aplaca os nervos. (Identidade) (...) talássico e mimético gigante/ atravessando a sede em minhas pernas (Fogo de Santelmo I). (...) Em minha pele ávida de feras/ em meus canais de fogo alucinante/ e mergulhando e flutuando e sempre/ indo e voltando e logo regressando/ teus pêlos minha flora num perplexo/ contínuo inaugurar de força estranha... (Fogo de Santelmo – II); seios queimando sob o odor da chuva (Nave no dilúvio).
Etimologicamente, erotismo deriva de Eros, o deus do amor. Segundo os estudiosos modernos, o erotismo é a espiritualização da carne e sua conversão em cultura - logo, a transcendência é a sua dimensão natural.Veja-se que erotismo em literatura não é um tema novo. Existe desde a antiguidade. Na Grécia, Platão, em seu O Banquete, o celebrou além dos limites da heterossexualidade. Aristófanes lega ao futuro comédias de extrema licenciosidade. As peças de sátiros, escritas por Ésquilo, Sófocles e Aristóteles, como complementos de suas tragédias, também eram extremamente livres em matéria sexual. Uma das lendas mais populares entre os gregos era a de que, certa noite, Hércules teria mantido relações sexuais satisfatórias com 49 das 50 filhas de Téspius, Rei da Beócia. Em Roma, o sexo representava papel essencial não só para Ovídio. Está presente também nas obras de Marcial, Juvenal, Ausone, Suetônio, Petrônio e Horácio, além de Apuleio, autor de O Asno de Ouro, uma das maiores novelas picarescas de todos os tempos. Considerado como o predecessor do romance moderno. Satiricon, de Petronius, foi escrito nos primeiros anos da era cristã, durante o governo do imperador Nero. A obra descreve as andanças de dois jovens na alta sociedade da época. Orgias, prostituição masculina, pederastia, incestos, homossexualidade, são alguns dos temas abordados por Petronius. Dezoito séculos depois, o romano Fellini faria um belo filme com essa história.
Condenados ou consagrados, os escritores, especialmente poetas, sempre transgrediram as regras sociais do amor burguês bem comportado, com desejos velados. Os autores contemporâneos, tentando surpreender o leitor, por vezes chegam a vulgarizar seus versos. Não acontece isso, porém, com Lucila Nogueira. Como afirma Floriano Martins, em comentário à obra da autora (Nogueira, 2006, contracapa): “o jogo que faz entre corpos visíveis e invisíveis dá ao erotismo da poesia de Lucila Nogueira uma alta voltagem que o aproxima do plano mítico sem, contudo, perder relação intensa com o carnal, com a realidade que corresponde a cada desejo, em vertigem e desalento. Trata-se, portanto, de uma poesia enriquecida por essa compreensão do mito como algo arraigado à nossa vida, e cuja perspectiva erótica o torna ainda mais fascinante”.
Nesse sentido, percebemos que seus versos procuram, sim, no corpo um canal para a consumação do desejo, mas numa estética lírica superior: O corpo – dizem – já não será o mesmo,/ desesperadamente eu te desejo/ enquanto navego rochas subterrâneas/ à beira da consciência humana. (Mas não demores tanto). Sérgio, eu te amo, exausta e obsessiva/ sobre o teu corpo em êxtase vencida. (O espírito das fadas). Por vezes, o erotismo é velado: (...) o monstro me arrebata novamente/terrível seu olhar sobre o meu corpo./ Em mim sempre se instala a sua sede/e eu resto umedecida altiva e mansa (O monstro arrebata novamente). A autora explicita nalguns trechos sem receios, seu desejo violento: no meu corpo invisível tu derramas/ geleiras, bulevares e castelos./ e a multidão latino-americana/ explode a sua fome no meu sexo./ Prepara um orgasmo eterno em que se altere/ a rotação das gerações em leste. (Ando invisível pelo apartamento). Desenvolve um erotismo elegante: sou a rudeza que te imobiliza/e essa doçura armada de improviso... (Identidade). O erotismo às vezes se revela pleno: enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios...; e as gárgulas de Notre Dame/ contornaram os mamilos/ como breves e clandestinos fogos-fátuos (Mas não demores tanto). Posições e práticas sexuais pouco convencionais não causam falsos pudores na autora: quando tua boca recobrir o seio... (Mas não demores tanto); deitada estou de bruços/ à flor dos aquedutos (Ó homens doces); você me quer de costas/ por dentro do edredon (Desespero blue). Mas às vezes se esconde numa máscara de timidez: todos eram demais e não sabiam/ mas quando tu me pegaste forte eu me surpreendi/ tímida/ e até hoje estou fugindo entre palmeiras/ pelas estradas líquidas do vinho e do néon (Mas não demores tanto). Temos aqui um efeito metafórico interessante: se a palmeira é exuberante por natureza, também pode servir para esconder. O néon é usado para nos fazer enxergar objetos em noites escuras, mas somente o que nos interessa revelar. Como o amor de adolescente: ele fechou a porta/ da casa de Granito/ o banho de tonel/ no fundo do quintal/ guardou minha nudez/ pelo lado de fora... (Se pode até ser dois); enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância/ que uma água subitamente morna quase apagou. (Mas não demores tanto).
A voz lírica de Lucila não renuncia ao papel de amante: tudo o que eu aprendi foi só para enlouquecer-te/ tira logo do meu corpo a túnica transparente (Poema X - de Refletores); porque eu sei satisfazer a tua carne/ mesmo assim aérea na alucinação (Despedaça-me); não sabem que sou santa/ querem dormir comigo e ter circuitos/ querem tremer nos ângulos agudos/ não sabem que sou santa (Poema IV - de Refletores). Reconhece, porém, suas fragilidades e o que passou para chegar a essa liberdade: sou a menina frágil que resiste/ e a que conquista o mundo, mas é triste/ e esse peito doente, estiolado/ a suportar o mundo em intervalos (Identidade). Num trecho do poema Mas não demores tanto, a autora trabalha com profunda sensibilidade o tema amor e morte; a blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia/ assassinada numa em campo de concentração. (...) A blusa de cetim/ deixa entrever a parte morta da carne branca/ sob a luz do globo fosforescente. Explicita-se, nessa obra, uma delgada sensualidade, com recato e o pudor de outras épocas: e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro/ tem ainda um oceano de lantejoulas/ refletindo a vibração da pele.
Interessante como a autora consegue trabalhar o erotismo em temas pouco convencionais, como a doença e a morte. Para Lucila, mesmo passiva, a mulher pode mostrar-se sensual, como nesse poema cujo título homenageia um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, Fale com ela: mulher que nunca fala/ isso é afrodisíaco/ mulher que não se mexe/ e s e entrega passiva/ mulher que está em coma/ pode voltar á vida/ desde que alguém lhe fale/ e queira ser ouvida. Num outro trecho do mesmo poema, o perigo inspira jogos sensuais: A trapezista continuará dormindo/ completamente nua/ na jaula dos leões.
Algumas temáticas recorrentes em outros livros não escapam dessa incursão literária pelo erotismo. O interculturalismo é um deles: o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada/ desde os coqueiros do Recife/ até os verdes pinheiros galegos/ que deram sombra aos romances de meus bisavós; (...) para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro (Mas não demores tanto). Não custa lembrar a origem luso-galego-brasileira de Nogueira, bem como suas incursões familiares, inclusive literárias, por outras culturas, como a escandinava (Estocolmo, 2004). A presença mitológica em sua obra não poderia prescindir o deus greco-romano do vinho e uma das festas em que é invocado, o carnaval: ele era como a voz rouca de Dioniso, fazendo soar as teclas do piano austríaco/ abandonado na passarela vermelha/ de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus (Mas não demores tanto). Seres lendários povoam eroticamente seus versos: mas eu vi se namorando/ os centauros e as sereias/ fazendo um amor na praia/ bem ao gosto dos mortais (Disse-me um dia Clarice). O esoterismo transfigura-se num verso cabalístico: e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços/ até o sol secar as sete saias/ tiradas ao som de sete violinos/ durante as sete noites de encantação (Mas não demores tanto).
O gozo aparece na obra de Lucila de forma contundente, revirando os elementos da natureza: dragão invisível/ língua demoníaca/ união clandestina/ avesso encantamento/ abismo vulcânico/ onde a partitura se desfez em notas a pauta (Mas não demores tanto); ventosa universal nadando leve/ o céu se precipita do meu sexo/ entranha nervo córtex voltagem/ arrasto os horizontes da cidade (Decisão). No momento do orgasmo, sente-se a condição divina que invade a todos: Concha dilacerada, espada bruta (...) sou mais forte que os deuses nessa hora (Nave do dilúvio). A autora sabe que o amor não aguarda os amanhãs: Tudo agora se tornou tão urgente; mas não demores tanto (Mas não demores tanto). Em diversos trechos,a narradora poética de Lucila apresenta sua ânsia por amar: gosto de amar assim avidamente/ fogueira terremoto tempestade... (Decisão); (...) e sou febre incessante, obsessiva/ numa ansiedade para além da vida (Identidade). Mas se deve fugir aos estereótipos: porque naquele tempo/ o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente indu (Mas não demores tanto).
Focando no tema do desejo, a autora nos leva a concluir que o amor se constrói com cumplicidade e amadurecimento: descobre quanto dura o seu fascínio/ o ímpeto sagrado de tua pele/ pois o amor, se é senhor, não sai vencido/ o sangue é breve, a morte muito longa/ e o futuro uma carta do destino (Tentação); que amar é arte/ de se fazer presente/ e tudo aquilo que precisamos/ é de poesia/ loucura e êxtase/ no ato heróico de reabrir as portas/ da carne mansa que se esquivou. (Mas não tardes tanto).
O amor é urgente. A poesia é urgente. Em Medellín como em Recife, faz-se necessário reinventar a estética do desejo.
FONTES
ALEXANDRIAN: Sade ou o Terror Sexual. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed.
DUEHREIN, E.: El Marques de Sade. Su Tempo. Su Vida. Su Obra. Madrid. s/d.
MORAES, E.: Sade: O Crime entre Amigos. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 245 - 254.
NOGUEIRA, Lucila. Poesia em Medellín. Tradução para o espanhol: Elkin Obregón. Recife: Ed. do autor, 2006.
_______________. Estocolmo. Recife: Ed. Livrorápido, 2004, 2ª edição.
PRADO JR., B.: A Filosofia das Luzes e as Metamorfoses do Espírito Libertino. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 43 - 58.
TROUSSON, R.: Romance e Libertinagem no séc. XVII na França. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 165 - 182
http://camanarede.terra.com.br/literatura/literatura_05.htm
http://mulher.sapo.pt/J43/251596.html
* ANDRÉ CERVINSKIS é escritor e ensaísta
0 Comments:
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home