MAR CAMONIANO
Painel de Camões no GPL de Salvador
MAR CAMONIANO
LUCILA NOGUEIRA
I
O mar que não pediste
tu cantaste
água partida
à proa do navio
mar de naufrágio
como o teu destino
o mar de Goa
Macau e Moçambique
só bastavam
as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo
ao de um só olho
ao pássaro camão
ao cristão novo
guiado pelo sonho
em desmantelo
só bastavam
MAR CAMONIANO
LUCILA NOGUEIRA
I
O mar que não pediste
tu cantaste
água partida
à proa do navio
mar de naufrágio
como o teu destino
o mar de Goa
Macau e Moçambique
só bastavam
as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo
ao de um só olho
ao pássaro camão
ao cristão novo
guiado pelo sonho
em desmantelo
só bastavam
as águas do Mondego
ao cavaleiro errante
ao peregrino
saudoso injustiçado
entristecido
a vida consumida
no desterro
degredada visão
desordenada
o caos interior
o desconcerto
alma cativa
toda em carne viva
as mãos vazias
face sem espelho
ai colonizador
desamparado
expulso de sua pátria
ai como dói
vagando pelas águas
sem vontade
anônimo instrumento
de um algoz
ai vento ai porto
ai ondas turbulentas
ai viagem sem data
de voltar
ai colonizador
desamparado
depois de morto
celebrado herói
perseguido excluído
ignorado
lembrando Portugal
pelo convés
do sofrimento
construiu um mundo
tão belo
entre pessoas tão cruéis
expulso do país
que tanto amava
vai contar sua história
sem rancor
que mar há de trazer
tudo de volta
os dias de inocência
nunca mais
espíritos convulsos
leis espúrias
massacraram teus sonhos
e ilusões
da gruta de Macau
ao sol da África
Lisboa mereceu
o teu perdão ?
que mar há de trazer
tudo de volta
o mal que te fizeram
vingarás ?
navegador dos mundos
do Oriente
um dia à tua terra
voltarás ?
que mar há de trazer
tudo de volta
se o mar te deram
como outra prisão
ai vento ai porto
ai ondas turbulentas
desmoronando
o tempo linear
ai colonizador
desamparado
tremendo como Inês
entre os leões
pedindo piedade
a seus carrascos
tratado sem respeito
como um cão
chamo os desesperados
neste instante
que a ti só chegam
os que sofrem muito
segundo o grau de amor
que inda tiverem
para escutar
teus brados e queixumes
o mar que não pediste
tu cantaste
só bastavam
as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo
ao de um só olho
ao fundador
da língua portuguesa
I I
Os romanos diziam
que o poema
é como uma viagem
de navio
e assim tu embarcaste
entre perigos
obedecendo
à força do destino
do amor de Violante
separado
a sensação de perda
o atravessa
vai partindo o poeta
com seu fado
as ondas são seu triste
respirar
vai humilhado
vai tão abatido
ignorando
a glória após a vida
dura e fugaz
desânimo infinito
sobre as águas um sol
segue escondido
vai partindo o poeta
vai partindo
vai enfrentar a morte
o padecer
o fogo de Santelmo
a tromba d ‘água
a fome e a miséria
vai sofrer
a quem amaste tanto
diz-me agora
o amor que te perdeu
que nome tem ?
o amor por que tu foste
desterrado
a pena de degredo
foi por quem ?
navios a pano
chorem timoneiros
ao invés de cantar
sempre ao sair
que está partindo agora
para o exílio
vida mais triste
que jamais se viu
I I I
Manhã na Índia
ao longo do rio Ganges
por dezessete anos
vou vagar
nau golpeada
voz submarina
o mal de ser sozinho
desfrutar
esta cidade é Goa
sobre o Índico
aqui estou
cabo de Guardafui
escrevo uma canção
e uma elegia
e publico uma ode
e tomo vinho
digo minha odisséia
em minha lira
meu desabafo
em cantos dividido
essa história que conto
oitava rima
narra acima de tudo
a minha vida
meu poema da Índia
minha lenda
nada do que eu vivi
te esqueceu
vida errante
meu drama em desatino
ilícito desejo
me perdeu
IV
O teu poema ateu
ganhou o mundo
conseguiu iludir
a inquisição
teu degredo foi árduo
e foi profundo
mas deu sentido
à palavra amor
V
Do mar da Índia
vou ao mar da China
vou morar em um barco
de Macau
uma rua
com grades de madeira
em terras do Oriente
é Portugal
eu prefiro esta gruta
estes penedos
as entranhas da pedra
e sua voz
eu prefiro estas redes
e o destino
improvável das pérolas
no mar
o meu corpo sem corpo
o céu sem asas
o consolo budista
de não ser
eu prefiro esta gruta
e esta poesia
coroando o meu sono
português
V I
D. Manuel sonhou
fez-se a viagem
remando sem cessar
ao Preste João
e o que era uma utopia
foi verdade
Bartolomeu e Gama
a fé venceu
do cabo das Tormentas
dá a volta
ao porto de Sofala
Calicute
a rota em verso
de Malemo Cana
sem ele quem havia
de chegar ?
V I I
Quem saberia enfim
dessa empreitada
não houvesse tua voz
para narrar ?
grandeza anterior
à frota escrava
saber quem haveria
sem tua voz ?
e Gama era um pirata
ou desterrado
aos olhos de outros reis
orientais
que o julgaram tão pobre
e à sua esquadra
ao ver os seus presentes
sem valor ?
tu que fizeste Gama
um Enéias
magia secular
de tua visão
disseste em odisséia
a tua lira
por tua causa
vive Portugal
V I I I
Morreste com teu povo
e lhe deixaste
obra de gênio
em troca da pensão
e nela o julgamento
da viagem
o velho do Restelo
é tua voz
condenando a cobiça
a glória a fama
a maldição maior
do teu penar
e Felipe domina
a Lusitânia
primeira ordem:
visitar Camões
es muerto mi senõr
dicem vassalos
su corazón rompido
por mui largo
mas su poesia vive
hasta lo eterno
asi cual oceano
y imenso cielo
I X
É preciso morrer
para estar vivo
dentro da laje
hás de ser aplaudido
o governo despreza
o gênio em vida
quando morre
se cobre com o seu brilho
e o seu dia de morte
é data cívica
como se isso apagasse
a injustiça
não sabem quando nasce
e em que cidade
foi Lisboa Coimbra
ou Santarém ?
ai cidade do Porto
ai sal da Régua
água do Douro
que me viu nascer
eu vim só te fazer
a confidência
o meu sangue galego
vim rever
mundo celta
de filtros e de fadas
enquanto choro as mágoas
na canção
as naus estão sonhando
ser estrelas
como Argos se tornou
constelação
X
Quem és tu
me perguntas entre as eras
quem és tu
que os meus versos estremecem ?
sou o mar favorável
o mar adverso
sou os pólos do mundo
que degelam
sou Calpe e sou Abila
torres de Hércules
sou o segredo
que te fez poeta
sou o mar que não pediste
mas cantaste
só bastavam
as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo
ao de um só olho
ao fundador
da língua portuguesa
CANTIGA DE AMIGO I
OU AO LADO DO BAR GARAGEM HAVIA UMA PONTE DE VAN GOGH
ontem quis me entregar à alegria e quase ao acaso
saí com o meu leque imenso vermelho de Madame Butterfly
e depois de cantar ao microfone o princípio de Summertime eu me deixei levar a um lugar onde há muito queria estar e na hora que entrei ali mesmo no escuro do som um fauno de quase dois metros gritou meu nome e ficamos dançando twist descendo até o chão
nesse bar sem luxo como os que conheci na Colômbia depois chegou um outro sátiro que ainda não me conhecia e talvez por isso mesmo me chamou logo ao andar de cima eu confidenciei ao meu amigo essa proposta com ironia
mas o amigo não entendeu e quis subir na frente e quis ir olhar
e voltou falando que era apenas um acampamento de sofás foi quando na calçada não sei porque me vieram apresentar
uma versão do Tadzio de Visconti em plena Veneza tropical eu era apenas uma ex-colecionadora diante de uma tela presa no museu do Louvre
quando alguém jogou sua bebida em cima daquela pele que exaltava a vida desde uns cinco metros de distância em fatal pontaria de Robin Hood acontece que o Tadzio era tipo o ídolo daquele súbito Eden subterrâneo e logo vieram guardiães para agredir o agressor insensato que vestia camisa azul eu me coloquei Joana D 'Arc no centro do remoinho e do túnel de Ernesto Sábato e tudo se acalmou na esquina de um bar de fim de noite em dia de sábado o céu amparava uma lua bêbada sobre as manchas da pantera
no colar e no voile transparente que fazia a valquíria voar
eu lembrei da Sala de Reboco quando o aventureiro de Estocolmo
repentinamente pareceu querer descer em direção ao rio silencioso pelas suas margens teciam alamedas muitas plantas e jardins que olhávamos todos de pé com saudade da taça do Graal cheguei em casa com a manhã nos olhos e na barra da túnica
e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas para recordar
que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh
0 Comments:
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home