Friday, February 08, 2008

MAR CAMONIANO


Painel de Camões no GPL de Salvador

MAR CAMONIANO

LUCILA NOGUEIRA



I

O mar que não pediste

tu cantaste
água partida


à proa do navio
mar de naufrágio


como o teu destino
o mar de Goa

Macau e Moçambique

só bastavam

as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao pássaro camão

ao cristão novo
guiado pelo sonho

em desmantelo

só bastavam

as águas do Mondego
ao cavaleiro errante

ao peregrino
saudoso injustiçado

entristecido
a vida consumida

no desterro

degredada visão

desordenada
o caos interior

o desconcerto
alma cativa

toda em carne viva
as mãos vazias

face sem espelho

ai colonizador

desamparado
expulso de sua pátria

ai como dói
vagando pelas águas

sem vontade
anônimo instrumento

de um algoz
ai vento ai porto

ai ondas turbulentas
ai viagem sem data

de voltar
ai colonizador

desamparado
depois de morto

celebrado herói
perseguido excluído

ignorado
lembrando Portugal

pelo convés
do sofrimento

construiu um mundo
tão belo

entre pessoas tão cruéis
expulso do país

que tanto amava
vai contar sua história

sem rancor
que mar há de trazer

tudo de volta
os dias de inocência

nunca mais
espíritos convulsos

leis espúrias
massacraram teus sonhos

e ilusões
da gruta de Macau

ao sol da África
Lisboa mereceu

o teu perdão ?

que mar há de trazer

tudo de volta
o mal que te fizeram

vingarás ?
navegador dos mundos


do Oriente
um dia à tua terra


voltarás ?


que mar há de trazer


tudo de volta
se o mar te deram


como outra prisão
ai vento ai porto


ai ondas turbulentas
desmoronando

o tempo linear

ai colonizador

desamparado
tremendo como Inês

entre os leões
pedindo piedade

a seus carrascos
tratado sem respeito

como um cão

chamo os desesperados

neste instante
que a ti só chegam

os que sofrem muito
segundo o grau de amor

que inda tiverem
para escutar

teus brados e queixumes

o mar que não pediste

tu cantaste
só bastavam

as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao fundador

da língua portuguesa


I I


Os romanos diziam

que o poema
é como uma viagem

de navio
e assim tu embarcaste

entre perigos
obedecendo

à força do destino
do amor de Violante

separado
a sensação de perda

o atravessa
vai partindo o poeta

com seu fado
as ondas são seu triste


respirar
vai humilhado

vai tão abatido
ignorando

a glória após a vida
dura e fugaz

desânimo infinito
sobre as águas um sol

segue escondido
vai partindo o poeta

vai partindo
vai enfrentar a morte

o padecer
o fogo de Santelmo

a tromba d ‘água
a fome e a miséria

vai sofrer
a quem amaste tanto

diz-me agora
o amor que te perdeu

que nome tem ?
o amor por que tu foste

desterrado
a pena de degredo

foi por quem ?

navios a pano

chorem timoneiros
ao invés de cantar

sempre ao sair
que está partindo agora

para o exílio
vida mais triste

que jamais se viu


I I I


Manhã na Índia

ao longo do rio Ganges
por dezessete anos

vou vagar
nau golpeada

voz submarina
o mal de ser sozinho

desfrutar

esta cidade é Goa

sobre o Índico
aqui estou

cabo de Guardafui
escrevo uma canção

e uma elegia
e publico uma ode

e tomo vinho

digo minha odisséia

em minha lira
meu desabafo

em cantos dividido
essa história que conto

oitava rima
narra acima de tudo

a minha vida

meu poema da Índia

minha lenda
nada do que eu vivi

te esqueceu
vida errante

meu drama em desatino
ilícito desejo

me perdeu




IV




O teu poema ateu

ganhou o mundo
conseguiu iludir

a inquisição
teu degredo foi árduo

e foi profundo
mas deu sentido

à palavra amor


V

Do mar da Índia

vou ao mar da China
vou morar em um barco

de Macau
uma rua

com grades de madeira
em terras do Oriente

é Portugal

eu prefiro esta gruta

estes penedos
as entranhas da pedra

e sua voz
eu prefiro estas redes

e o destino
improvável das pérolas

no mar
o meu corpo sem corpo

o céu sem asas
o consolo budista

de não ser
eu prefiro esta gruta

e esta poesia
coroando o meu sono

português


V I


D. Manuel sonhou

fez-se a viagem
remando sem cessar

ao Preste João
e o que era uma utopia

foi verdade
Bartolomeu e Gama

a fé venceu
do cabo das Tormentas

dá a volta
ao porto de Sofala

Calicute
a rota em verso

de Malemo Cana
sem ele quem havia

de chegar ?

V I I

Quem saberia enfim

dessa empreitada
não houvesse tua voz

para narrar ?
grandeza anterior

à frota escrava
saber quem haveria

sem tua voz ?

e Gama era um pirata

ou desterrado
aos olhos de outros reis

orientais
que o julgaram tão pobre

e à sua esquadra
ao ver os seus presentes

sem valor ?

tu que fizeste Gama

um Enéias
magia secular

de tua visão
disseste em odisséia

a tua lira
por tua causa

vive Portugal


V I I I

Morreste com teu povo

e lhe deixaste
obra de gênio

em troca da pensão
e nela o julgamento

da viagem
o velho do Restelo

é tua voz

condenando a cobiça

a glória a fama
a maldição maior

do teu penar
e Felipe domina

a Lusitânia
primeira ordem:

visitar Camões

es muerto mi senõr

dicem vassalos
su corazón rompido

por mui largo
mas su poesia vive


hasta lo eterno
asi cual oceano


y imenso cielo


I X


É preciso morrer

para estar vivo
dentro da laje

hás de ser aplaudido
o governo despreza

o gênio em vida
quando morre

se cobre com o seu brilho

e o seu dia de morte

é data cívica
como se isso apagasse

a injustiça
não sabem quando nasce

e em que cidade
foi Lisboa Coimbra

ou Santarém ?

ai cidade do Porto

ai sal da Régua
água do Douro

que me viu nascer
eu vim só te fazer

a confidência
o meu sangue galego

vim rever

mundo celta

de filtros e de fadas
enquanto choro as mágoas

na canção
as naus estão sonhando

ser estrelas
como Argos se tornou

constelação


X

Quem és tu

me perguntas entre as eras
quem és tu

que os meus versos estremecem ?

sou o mar favorável

o mar adverso
sou os pólos do mundo

que degelam

sou Calpe e sou Abila

torres de Hércules
sou o segredo

que te fez poeta

sou o mar que não pediste

mas cantaste
só bastavam

as águas do Mondego

ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao fundador

da língua portuguesa
CANTIGA DE AMIGO I
OU AO LADO DO BAR GARAGEM HAVIA UMA PONTE DE VAN GOGH


ontem quis me entregar à alegria e quase ao acaso
saí com o meu leque imenso vermelho de Madame Butterfly
e depois de cantar ao microfone o princípio de Summertime eu me deixei levar a um lugar onde há muito queria estar e na hora que entrei ali mesmo no escuro do som um fauno de quase dois metros gritou meu nome e ficamos dançando twist descendo até o chão
nesse bar sem luxo como os que conheci na Colômbia depois chegou um outro sátiro que ainda não me conhecia e talvez por isso mesmo me chamou logo ao andar de cima eu confidenciei ao meu amigo essa proposta com ironia
mas o amigo não entendeu e quis subir na frente e quis ir olhar
e voltou falando que era apenas um acampamento de sofás foi quando na calçada não sei porque me vieram apresentar
uma versão do Tadzio de Visconti em plena Veneza tropical eu era apenas uma ex-colecionadora diante de uma tela presa no museu do Louvre
quando alguém jogou sua bebida em cima daquela pele que exaltava a vida desde uns cinco metros de distância em fatal pontaria de Robin Hood acontece que o Tadzio era tipo o ídolo daquele súbito Eden subterrâneo e logo vieram guardiães para agredir o agressor insensato que vestia camisa azul eu me coloquei Joana D 'Arc no centro do remoinho e do túnel de Ernesto Sábato e tudo se acalmou na esquina de um bar de fim de noite em dia de sábado o céu amparava uma lua bêbada sobre as manchas da pantera
no colar e no voile transparente que fazia a valquíria voar
eu lembrei da Sala de Reboco quando o aventureiro de Estocolmo
repentinamente pareceu querer descer em direção ao rio silencioso pelas suas margens teciam alamedas muitas plantas e jardins que olhávamos todos de pé com saudade da taça do Graal cheguei em casa com a manhã nos olhos e na barra da túnica
e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas para recordar
que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh



0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home