Friday, January 22, 2010

LUCILA NOGUEIRA TABASCO



sexta-feira, 22 de Janeiro de 2010


Lucila Nogueira Tabasco

Francisco Soares

TABASCO

Está ainda pouco estudada, sobretudo para os não-brasileiros, uma geração pernambucana – talvez a última a definir-se geracionalmente. É conhecida como a geração de 65 e agrega personagens, obras, performances muito diversas. É, portanto, uma geração heterodoxa, multímoda, pluridisciplinar também – nisso antecipando o que se iria seguir. Muitos são os nomes associados a ela, como Alberto Cunha Melo, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Maria de Lourdes Hortas, Paulo Brucsky (talvez o menos geracional), Tereza Tenório, vários outros nomes que agora não recordo e os que recordo citei por ordem alfabética.

Construiu Lucila Nogueira, ao longo dos anos, uma já longa obra enquanto poetisa (é também ensaísta e professora universitária), principalmente em verso. Também nos seus livros encontramos o cariz heterodoxo, heteróclito e heterogéneo da geração. Vivem eles entre o épico, o lírico e o dramático – predominando os dois primeiros modos.

Um dos mais recentes livros publicados intitula-se Tabasco e centra-se na América Latina, particularmente no antigo México e vizinhanças a sul. Editou-o em Paraty a Selo Off Flip no ano passado (creio estar o selo associado ao famoso festival internacional de poesia). A obra é estimulante para a crítica e a teoria literária, inserindo-se numa das linhas da sua autoria.

Talvez a primeira impressão do leitor seja a de uma cascata de frases atiradas pela janela (página), que nos ofuscam, deixando-nos algo perplexos, com a tal ruga na testa e a passar a mão pelo queixo. Só depois de lidas todas as páginas com atenção, retendo os fios de sentido que ligam e religam os fragmentos projetados sobre o nosso campo visual, é que percebemos que há até um percurso narrativo, que o poema não é só uma lírica de tons épicos mas também uma viagem e um macrotexto.

A disposição do conjunto organiza-se em 10 cantos, numa linhagem bem conhecida pelas literaturas lusófonas e que, por exemplo, Ungulani Ba Ka Khosa verteu para um híbrido (épico anti-épico e também lírico) moçambicano: Ualalapi. Não é esta a única semelhança, coincidência, com literaturas africanas lusófonas. Também M. António relata liricamente e em catadupas de imagens uma viagem (até que ponto imaginária) pela América, a do Norte, mas também a América mestiça, híbrida, dos antigos poderes, dos comandantes das guerrilhas, do melting pot que é hoje toda a América mesmo só por dentro, quero dizer, mesmo ignorando por instantes os emigrados mais recentes.

O principal recurso utilizado pelos dois poetas é o da colagem, da colagem em cascata. Isso é possível cada vez mais porque o advento de fenómenos globalizantes com a própria Internet, através da qual vocês estão a ler-me, desenvolveu-nos a prática de interseccionar imagens, fragmentos, unindo-os por fios de sentido momentâneos, alguns mais duradouros, mas em geral efémeros. É, de resto, o que nos acontece no quotidiano das cidades aceleradas, com tráfegos intensos, vidas apressadas, angústias instantâneas por vezes inexplicáveis: vamos apanhando os mais diversos estímulos, em catadupa e simultaneamente, apercebemo-nos de algumas ligações possíveis entre as 'coisas', outras percebemos porque estamos mesmo atentos a elas e, no geral, seguimos dois ou três fios de conduta que se relacionam genericamente com o nosso projeto de vida.

Desenvolvido esse mecanismo psicológico, hoje o poeta pode jogar-nos imagens fragmentárias umas a seguir às outras (com recursos informáticos algumas em simultâneo), sem ter que desenvolver alguma delas, sem ter que nos dar uma ligação explícita entre elas, porque nós apanhamo-las conforme lemos e vamos juntando no cesto, agrupando-as entre o aleatório e os tais fios de sentido, momentâneos ou mais extensos. Isto vem potenciar imenso o método ou processo poético da colagem, muito desenvolvido já pelas vanguardas artísticas do século XX em diversas disciplinas. A leitura efetiva-se, assim, por uma semiose reticular. As sinapses que dão registo ao conteúdo podem ser quaisquer umas, sendo no entanto que a sua definição determinará (minimamente que seja) um perfil semiótico e diacrítico.

No caso de Lucila Nogueira e de Tabasco há dois ou três liames recorrentes: o mítico, o espiritual, o mágico, a migração hiperbólica do «eu» (os deuses me continuam em Pomona), mesclada com breves instantâneos autobiográficos que nos dão sinal do percurso narrativo que estrutura subterraneamente esta lírica de tons épicos e arremessos iniciáticos. Tal como n'Os lusíadas a viagem começa a meio, mas neste caso do meio para o regresso, enquanto Camões vai do meio da ida para o início, depois para a previsão de um futuro histórico-mítico e finalmente para o regresso. Percebe-se que aqui o sujeito lírico é perturbado na sua viagem por telefonemas, preocupações, passagens de avião, dois dias de avião, retorno ao quotidiano do Recife, atribulado por um incidente que não se descortina aqui mas talvez em outra obra (talvez em Casta maladiva). A imersão no presente-passado histórico-mítico mexicano (contraposto ao presente-futuro histórico-mítico de Camões) é assim interrompida mas depois de se dar uma fusão essencial entre ambiente, história, mito, espírito, magia, diversão, amor, natureza – uma cópula cósmica operada a partir do sujeito poético, o operador da trama que o transcende.

Para quem se interesse em conhecer melhor a obra – vale a pena – a morada da editora é a seguinte: Selo Off Flip Editora L.da, CP 74901, 23970-000, Paraty, RJ, Brasil. Seguramente o preço de capa será mais baixo do que a viagem do livro até Angola, Cabo Verde, ou Moçambique, ou Portugal, ou São Tomé e Príncipe (para já não falar de Timor). Aproveite e mande vir mais dois ou três que, provavelmente, pagará o mesmo.

Boa leitura!

**************

TABASCO

Rei Berroa

He aquí varios de los dilemas que le plantea al lector Lucila Nogueira en este fascinante poemario que bien podríamos describir como una etnografía épico-poética de las culturas de Tabasco: ¿Cómo clasificar y descifrar el mundo y sus culturas desde este cuerpo en donde se maneja la lengua con todas sus intrincadas resonancias, desde esta anatomía nuestra tan pobremente diseñada? ¿Cómo contar el cuerpo de la historia de nuestras civilizaciones primigenias (olmecas, toltecas, mayas, mexicas) para celebrarlas con las mismas palabras que usamos hoy para ligarnos al presente o definirnos en futuro? ¿Qué postura tomar para salvar lo que podamos de su pasado, que es el nuestro, en esta crónica del vivir que sabemos fragmentado? Partiendo de estas cuestiones, la poeta se ha lanzado al galope en un vuelo visionario, atando los cabos del ahora con ese pasado monumental de la zona de Tabasco y su habitación de trópico húmedo.

Con este libro febril en que festeja la cultura del agua, Lucila Nogueira nos pone a todos de pie ante la fuerza ancestral de las cabezotas olmecas, nos obliga a estar atentos al relámpago del jaguar en la noche oscura del río mesoamericano o hace que tomemos la postura de la sorpresa erguidos e inmóviles como la ceiba o la iguana.

Con Tabasco, la poeta pernambucana ha logrado sacar a la luz, darle vitalidad poética a la extraordinaria coherencia de las culturas que nos precedieron en el tiempo y que le dan razón de ser a la mayafilia que ha experimentado el mundo desde que pudimos empezar a descifrar los laberintos cosmológicos de sus libros y centros ceremoniales. Si Grecia le dio a Europa un imaginario para sentar y representar su cosmogonía, los mayas y los olmecas le dieron a América una forma definitiva para imaginar a sus dioses u organizar su cadadía. En los diez cantos de Tabasco, la poeta viaja a las profundidades de ese monumento vegetal o pétreo que fueron estas civilizaciones y se eleva ella y nos eleva a todos en la más alta celebración de “los cuatro rumbos del universo mundo”.


***************



TABASCO: HERMOSA VISÃO DE UMA TERRA HERMANA

Johnny Martins*

Também trouxeram alguns casacos e saias, iguais às que eles usavam, e disseram que deveríamos aceitar essas coisas em grande quantidade, pois não tinham mais ouro para nos dar, mas que, para além, na direção do pôr-do-sol, havia abundância de ouro, e disseram: "Colua, Colua, Mejico, Mejico", porém nós não sabíamos o que poderia ser este Colua ou Mejico.1

Bernal Diaz Del Castillo (1492-1584), The True History of the Conquest of New Spain (The expedition under Juan de Grijalva: Discovery of Rio de Tabasco, Chapter VIII).


Quando, no início do século XVI, os espanhóis empreenderam a campanha de conquista da “Nova Espanha” ― hoje México ―, foram ironicamente auxiliados por um antigo mito local de que o deus Quetzalcoatl retornaria da direção de onde nasce o Sol para retomar seu lugar de governante do povo asteca. Tendo chegado a conhecer tal profecia, o conquistador Hermán Cortés aproveitou-se de várias coincidências para se insinuar como o esperado rei divino e se introduzir na corte do poderoso Montezuma. Embora contestada, essa versão da conquista do México é aceita por muitos historiadores. Verdadeira ou fruto da imaginação colonizadora, o fato é que Cortés subjugou vários povos nativos daquela região, entre eles os astecas, e os desdobramentos dessa história são suficientemente eloqüentes nas ruínas daquelas civilizações.

Cinco séculos depois daquele cumprimento inesperado da profecia, podemos ser levados por mais uma expedição exploratória ao México, mas desta vez o registro que nos é oferecido na obra intitulada Tabasco, da poeta Lucila Nogueira, converte a dominação em cumplicidade, a ganância em desejo e o estranhamento em identificação.

Tabasco é um dos Estados no Sul do México por onde se estendeu a civilização ― tecnológica e culturalmente ― mais avançada da América pré-colombiana: o Império Maia. E é essa região que surge como referência para uma quase epopéia dos entrelaçamentos culturais na América Latina, de antes e depois da colonização empreendida por coroas ibéricas, através de um eu lírico que alia história coletiva e individual.

Com um discurso poético prenhe de palavras com origem nas línguas indígenas da região de Tabasco e nomes de elementos de uma fauna e de uma flora incomum aos olhos brasileiros, o texto da obra, desde o início, de certo modo coloca o leitor na mesma posição de espanto daqueles conquistadores, descritos nos testemunhos do cronista espanhol Bernal Diaz Del Castillo, que não sabiam o que era o México.

Eu vi o garrobo

marido da iguana

eu vi os nenúfares nos pântanos de Cemtla

naveguei entre os manglares

entre as garças tabasquenhas

a jardineira atravessou as ruas durante a noite

eu cantava canções dos Beatles em português

terras e águas de Tabasco

o avião descendo em plantações

como quem entra em uma tela completamente verde

como quem chega ao Éden primordial

e sabe do poder da água e da chuva

assim cheguei a ti Villahermosa:

rios lagos charcos águas marinhas

A introdução da sucessão de imagens com esse “eu vi” não informa apenas experiências vividas através do verbo no pretérito perfeito, mas aponta também para um diálogo com as formas discursivas com que a Bíblia apresenta as profecias: “E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.” (Apocalipse do apóstolo S. João, 21:1). Acrescentemos a isso a referência às “canções dos Beatles em português” que reforça, não apenas a pluralidade de nossa formação cultural, mas, se nos lembrarmos do convite feito na letra da música Strawberry Fields Forever (“Deixa-me te levar, pois estou indo para os Campos de Morango./ Nada é real e não há nada para nos prender. / Campos de Morango para sempre.”2), também enfatiza a atmosfera de utopia que se estende por todos os dez cantos do poema e que surge já nos primeiros versos.

Na apresentação de uma coletânea de estudos sobre literatura e utopia3, Cordiviola e Cavalcanti (2006:10) refletem que a utopia encerra uma crítica ao estado de coisas do presente:

[...] o presente da enunciação fornece também as chaves para analisar os passados com espanto e indignação pelo que não foi, pelo que poderia ter sido, ou para recuperá-los com nostalgia por aquilo que supostamente teria acontecido em eras remotas, antes da irrupção das discórdias e das desigualdades. Assim, o caminho para afirmar uma ordem alternativa ou ideal é a crítica à ordem vigente.

Tal ponderação nos leva a estender o termo “utopia” não apenas a um futuro ideal imaginado, mas também a um passado representado com nostalgia, ao desejo de recuperar um Éden perdido. Esta obra de Lucila Nogueira funda novamente esse lugar paradisíaco, onde o nome da capital do Estado mexicano de Tabasco, Villahermosa ― “vila formosa” ―, assume dimensões simbólicas que vão apontar para uma nova “conquista” (“como quem chega ao Éden primordial / [...] assim cheguei a ti Villahermosa:”).

No caminho dessa aventura poeticamente utópica, milhares de anos de história e cultura são evocados e convergem para o espaço literário de Tabasco, desde as priscas eras de ancestrais das grandes civilizações pré-colombianas (“Olmecas / Zapotecas / Mixtecas / Mayas / Méxicas / Zoximilcas / cultura mãe fixada em Tabasco e Vera Cruz”), passando por referências a acontecimentos e personagens da época da colonização (“não me chamo Malinche nem Marina / mas também tenho o dom das línguas / que seduziu o conquistador”), até chegar a acontecimentos contemporâneos que causaram profundas transformações na região, como uma terrível inundação que atingiu o Estado de Tabasco em 2007, deixando 80% de seu território sob as águas:

a marca do dilúvio na biblioteca

a marca da cheia sobre o viaduto

e a cada esquina uma inscrição milenar

uma lição completa de resistência

*Tabasco de pé *

assim como tu cidade vista do alto

permaneço de pé

na luta e no desafio

permaneço de pé

meu rosto largo

quer ter a força ancestral de uma cabeça Olmeca

Numa voz que “quer ter a força ancestral de uma cabeça Olmeca”, Tabasco surge alinhado com demandas socioculturais contemporâneas, mantendo de pé “uma lição completa de resistência” que não pode ser ignorada ao se falar em utopia literária na América Latina. Nas palavras de Soares Silva (2006:347)4:

A condição latino-americana se consolida enquanto comunidade de agnação por um painel mínimo de confluência histórica, memórias comuns, que permite esse enlace. Sobretudo quando estão sublinhadas as heranças coloniais e pré-colombianas, permitindo a construção dessa identidade cultural, [...]

Desse modo, no poema, resistir não equivale a proibir o discurso do outro, mas a evitar dicotomias que ameacem calar mitos literários por conta de sua origem. Já não podemos fugir de certos desdobramentos da colonização e, uma vez que as línguas com que nós, latino-americanos, construímos nossa literatura são todas originalmente européias, não podemos negar essa herança. Assim, outro ponto de destaque na obra é a amplitude de sua intertextualidade.

para os poetas nada soa estranho

os três braços do rio

arrodear

pântanos de Cemtla

orgulho de viver

descansar a cabeça sobre o braço

ouvindo o som da água

heroína da metamorfose

No trecho acima, a lembrança do mito de Narciso é inevitável. Descrito na obra Metamorfoses, do poeta Ovídio, o mito fala do belo rapaz que se apaixonou por sua própria imagem ao contemplá-la nas águas de um rio. A evocação desse herói do cânone europeu, identificado com uma “heroína” junto aos “pântanos de Cemtla”, marca uma comunhão de culturas, mas também a feminilidade do eu lírico, que reivindica a pluralidade ao invés do estranhamento: o fluxo do(s) mundo(s) se espelha(m) na literatura e aos poetas nada deve soar estranho quando eles descansarem a cabeça sobre os braços desse rio de linguagens. No Canto VI, a menção ao nome de Malinche/Marina lembra a nativa de origem maia, uma nobre que se tornou escrava e que encantou Hermán Cortés, com quem teve um filho e o acompanhou como intérprete durante sua expedição pelo México. Ora representada negativamente como traidora, ora positivamente como mãe do primeiro mestiço, Doña Marina ― como é respeitosamente referida nos textos de Bernal Diaz Del Castillo ― torna-se, para essa voz feminina de Tabasco, um elemento de identificação por seu domínio de várias línguas, inclusive da língua do invasor, como uma espécie de Caliban-mulher5.

A literatura mexicana é festejada de modo particular em Tabasco, não apenas através da presença explícita do nome de um dos seus maiores poetas modernistas, Carlos Pellicer (1897-1977), mas também através de um discurso que parece irmanado com obra daquele poeta. Nascido em Villahermosa e conhecido como um viajante apaixonado, cuja poesia registra a natureza e as paisagens de sua terra, com freqüentes referências à água ― assim como no poema de Lucila Nogueira, onde o termo água(s) aparece 29 vezes, marcando na própria linguagem a inundação que recentemente devastou a terra que dá título ao poema.

Considerando as similaridades lingüísticas e socioculturais, é surpreendente que, exceto aqueles que têm interesses específicos, quase nada se saiba sobre esse país de história tão rica como é o México e, assim como os demais países da América Latina, pareça tão distante de nós, brasileiros. Os cantos de Tabasco, porém, convidam o/a leitor/a a ser conquistador/a desse “admirável mundo novo”, mas põe no lugar da conquista que separa, a conquista que congrega, celebra e rejeita fronteiras discursivas, tornando-nos novamente hermanos, através da poesia.




TABASCO: PÓS-MODERNIDADE E MITOLOGIA

André Cervinskis

O novo livro de Lucila Nogueira, Tabasco, dá continuidade ao percurso mitológico de sua poesia, presente desde seu primeiro livro, Almenara (1979) até Estocolmo (2004), bem como igualmente dá seqüência às técnicas pós-modernas que vem utilizando desde a entrada no milênio.

A impressão que me chega ao ler o volume, escrito no México e editado em 2009 pela Off Flip de Paraty, é que a autora permanece fiel a essa feliz trajetória da busca da poesia identitária, baseada nos mitos, dessa vez mesoamericanos, ao tratar da cultura dos maias e olmecas e do acontecimento apocalíptico de 21 de dezembro de 2012, quando, conforme afirmam as profecias maias, o mundo terá seu fim:

Tabasco de pé/ ainda terei tempo de dançar em tuas plantações/ assim como somos hoje/ eletrônicos e digitais/ ainda há tempo/ quem sabe sobreviveremos/ cada qual em sua Gaiola de Faraday/ protegidos por fios do telhado até o subterrâneo/ e os eclipses permanecerão durante horas/ e celebraremos a ignorância do funcionamento do sol/ 2012/ o que sabiam os maias/ o que sabemos nós/ estamos atravessando um feixe de radiação/ Tabasco/ Atlântida berço das raças americanas/ renascerás?

(NOGUEIRA, 2009, p. 39)

A civilização maia foi uma cultura mesoamericana pré-colombiana, notável por sua língua escrita (único sistema de escrita do novo mundo pré-colombiano que podia representar completamente o idioma falado no mesmo grau de eficiência que o idioma escrito no velho mundo), pela sua arte, arquitetura, matemática e sistemas astronômicos. Inicialmente estabelecidas durante o Período pré-clássico (2000 a.C. a 250 d.C.), muitas cidades maias atingiram o seu mais elevado estado de desenvolvimento durante o Período clássico (250 d.C. a 900 d.C.), continuando a se desenvolver durante todo o período pós-clássico, até a chegada dos espanhóis. No seu auge, era uma das mais densamente povoadas e culturalmente dinâmicas sociedades do mundo.

Os maias dividem muitas características com outras civilizações da Mesoamérica, devido ao alto grau de interação e difusão cultural que caracteriza a região. Hoje, os seus descendentes formam populações consideráveis em toda a área antiga (Honduras, Guatemala, El Salvador) e mantém um conjunto distinto de tradições e crenças que são o resultado da fusão das ideologias pré-colombianas e pós-conquista. Assim como os astecas e os incas, os maias acreditavam na contagem cíclica natural do tempo. Os rituais e cerimônias eram associados a ciclos terrestres e celestiais que eram observados e registrados em calendários separados. Os sacerdotes maias tinham a tarefa de interpretar esses ciclos e fazer um panorama profético sobre o futuro ou passado: a purificação incluía jejum, abstenção sexual e confissão,ela era normalmente praticada antes de grandes eventos religiosos.

Segundo os maias, o nosso mundo terminará no sábado, 21 de dezembro do ano 2012. Eles dizem que isso acontece a cada 5.125 anos. Que a terra se vê afetada pelas mudanças do sol mediante o deslocamento do seu eixo de rotação. Previram que, a partir desse movimento, haveria grandes desastres. Os Maias asseguravam que a sua civilização era a 5ª iluminada pelo sol (Kinich-Ahau), o 5° grande ciclo solar. Que antes haviam existido outras quatro civilizações que foram destruídas por grandes desastres naturais. Achavam que cada civilização é apenas um degrau para ascensão da consciência coletiva da humanidade. Para os maias, no ultimo desastre, a civilização teria sido destruída por uma grande inundação, que deixou apenas alguns sobreviventes, dos quais eles eram seus descendentes. Pensavam que, ao conhecer os finais desses ciclos, muitos humanos se preparariam para o que vinha e que, graças a isso, conseguiriam conservar sobre o planeta a espécie pensante, o seu humano.

O livro sagrado Maia, Chilam Balam, diz que, no 13° Ahau, no final do último Katún (2012), o Itza será arrastado e rodará Tanka (…as civilizações… cidades serão destruídas); haverá um tempo em que estarão sumidos na escuridão e depois virão trazendo sinal futuro; a terra despertará pelo norte e pelo poente, o Itza despertará. Reinterpretando essa profecia, e olhando para os acontecimentos recentes da Era Tecnológica, aquecimento global e desumanização da pós-modernidade, a poeta Lucila Nogueira exclama:

Meu povo sabe prever o fenômeno dos eclipses/ calendário lunar de 260 dias/ meu povo sabe registrar o tempo desde o espaço de um dia até 64/ milhões de anos...

(NOGUEIRA, 2009, p. 26)

Do materialismo à violência/ destruição dos recursos naturais/ desflorestamento e degradação ambiental/ efeito estufa/ poluição da água/ fome seca/ o retorno das doenças/ elevação do nível dos oceanos/ diminuição das calotas polares/ redução do Monte Quênia e do Kilimanjaro/ na Antártida e no Cáucaso/ onde antes só havia gelo/ começa a surgir vegetação/ delírio do consumo/ sistema financeiro/ o rumor do dinheiro de plástico em suas máquinas/ frágeis a serem interrompidas/ pela surpresa dos eventos cósmicos

NOGUEIRA, 2009, p. 37)

Sou um relógio como Kuklucan/ uma pirâmide telepática/ em direção ao sol/ eu vi a luz montada no jaguar/ eu vi o raio no centro da galáxia/ eu vi o eclipse que alterou a matéria humana/ eu vi o desequilíbrio das estações/ e a destruição das colheitas/ eu vi a onda de calor que provocou o desgelamento dos pólos/ eu vi o colapso elétrico da rede informática/ por onde navegava o mundo virtual/ eu vi o cometa que transformou de modo violento nosso planeta/ .../ eu vi a raça cósmica/ a festa cósmica/ a nova era da terceira dimensão/ Chilam Balam/ Livro sagrado maia/ começamos a entrar no salão dos espelhos/ atravessando a tempestade solar/ o aquecimento da atmosfera/ os microships param de funcionar/ a energia elétrica permanece durante a tempestade/ 2012 calendário Maya herdeiro dos Olmecas/ 21 de dezembro de 1012.

(NOGUEIRA, 2009, p. 31.32)

Os olmecas, de que trata Lucila Nogueira, foram o povo que esteve na origem da cultura olmeca, pré-colombiana da Mesoamérica que se desenvolveu nas regiões tropicais do centro-sul do atual México durante o pré-clássico, aproximadamente onde hoje se localizam os estados mexicanos de Veracruz e Tabasco, no Istmo de Tehuantepec, numa zona designada área nuclear olmeca. A cultura olmeca floresceu nesta região aproximadamente entre 1500 e 400 a.C., e crê-se que tenha sido a civilização-mãe de todas as civilizações mesoamericanas que se desenvolveram posteriormente.[2] No entanto, desconhece-se a sua exacta filiação étnica, ainda que existam numerosas hipóteses colocadas para tentar resolver esta questão (http://pt.wikipedia.org).

Assim, integrando-se completamente à cultura daqueles povos meso-americanos, Lucila se define como terra de “sete hectares”, por onde passa o “jaguar”, animal sagrado e enigmático, à margem de um “lago de crocodilos”:

Sou um poema de sete hectares/ sou um poema de sete hectares à margem de um lago de crocodilos de fogo/ sou um poema de sete hectares na tarde com sete jaguares negro-azulados/ eu vim desfrutar do campo e do voo das aves...

(NOGUEIRA, 209, p. 13)

Mas Lucila também nos presenteia, em seu livro, com uma descrição poética e peculiar da capital do Estado mexicano de Tabasco, que dá nome ao livro. Fala também das paisagens e hábitos dos habitantes da terra, com metáforas fortes e cheias de imagens belíssimas, como a do jaguar:

Eu vi o garrobo/ marido da iguana/ eu vi os nenúfares nos pântanos de Cemtla/ naveguei entre os manglares/ entre as garças tabasquenhas/ a jardineira atravessou as ruas durante a noite/ eu cantava canções de Beatles em português/ terra e águas de Tabasco/.../ Chegarei em silêncio a Villahermosa/ capital da água e da selva/ atravessarei Usumacinta/ e brilhará ao sol meu corpo nu no encontro de rios de Cemtla/ celebrarei entre as palmeiras o mistério dos adoradores do jaguar/ cantarei o segredo dos Olmecas em seu código divino...

(NOGUEIRA, 2009, p. 11)

Ao se reconhecer como mulher maia, cheia de colares e pulseiras coloridas, que soube seduzir o conquistador e domina o dom das línguas, a poeta dá voz às mães e guerreiras desse povo do jaguar, que surpreendeu os cientistas séculos depois de seu misterioso desaparecimento:

A minha máscara é de jade e obsidiana/ minhas pulseiras e colares são de âmbar/ a maior das divindades representa o meu corpo humano/ caminho de Campeche a Chiapas/ de Tabasco a Yucatan/...Não me chamo Malinche nem Marina/ mas também tenho o dom das línguas/ que seduziu o conquistador/ que um dia chorou amargamente a sua noite triste/ após destruir estátuas das divindades que desafiavam a religião do invasor/ meu corpo não tinha cidadania/../ Levanto minha máscara de jade/ minha máscara de mosaicos toda de jade/ em minha boca a pedra que simboliza a vida imortal/ meu colar é todo feito de ossos do jaguar/ o meu manto é de contas coloridas/ e eu uso os caracóis como trombetas/ para chamar desde o inframundo/ as figuras de carne e barro/ que se erguem das tumbas até os santuários de sacrifício da Guatemala

(NOGUEIRA, 2009, p. 26.27-28)

O cotidiano literário profissional de Lucila Nogueira, aliado à sua experiência de vida, vem refinando cada vez mais a sua poesia, deixando-a com resultados mais aguçados para as peculiaridades culturais dos povos latino-americanos. Vê-se que a linha pós-moderna que abraçou em deteminados livros posteriores a Imilce (2000), que considero o mais belo livro escrito por ela, nunca é abandonada, voltando a poeta, mesmo no universo das evocações mitológicas, a abordar técnicas experimentais da contemporaneidade , como notadamente em seus livros Refletores (2002), Bastidores (2002), Desespero Blue (2003), Estocolmo(2004).Conforme afirmei no ano passado, na passagem dos 30 anos de poesia da autora, em crônica literária no site de Wellington de Melo,

Lucila Nogueira, especialmente nas obras Imilce (2000) e Estocolmo (2004) vai desenvolver, com toda maestria, um poesia forte, mítica, com profundas raízes identitárias. Incorporando sua herança ibérica e o tempero da cultura brasileira, vai enxertando, em sua obra, a miscigenação poética de elementos de culturas européias, ciganas, celtas, cristãs e, evidentemente, brasileiras. (...) Na passagem dos 30 anos de carreira poética de Nogueira, fica para nós a obrigação de reverenciar autoras autênticas como ela, com uma obra original, genuína, que não tem medo de cruzar as fronteiras de nosso país. Que incorpora a força da identidade ao desejo, traduzindo-os em versos de pura magia e revelação, verdadeira fruição literária que resvala num prazer estético. Lucila Nogueira, certamente, é uma dessas autoras; carioca assumidamente nordestina, pernambucana, brasileira mas com os seus pés no mundo inteiro.

Em Tabasco, mais uma vez Lucila Nogueira encontra nas identidades étnicas latino-americanas a sua própria, vestindo-se da bela imagem da mulher maia que seduziu o conquistador espanhol.Também nós, seus leitores e admiradores, fomos seduzidos por ela, para alegria e deleite das futuras gerações que melhor se reconhecerão em seu contexto de novo mundo pós-colonial através dos versos peculiarmente bem construídos de Lucila Nogueira.

Olinda, 06 de abril de 2010

Bibliografia :

Tabasco. Nogueira, Lucila.Paraty, 2009,edições Off Flip.

Na Web :

http://pt.wikipedia.org/wiki/Maias#Religi.C3.A3o

http://www.doismiledoze.com/a-primeira-profecia-maia.

http://pt.wikipedia.org.

http://wellingtondemelo.com.br/site/2009/09/lucila-nogueira-poesia-e-identidade-universais.

Consulta em: 06/04/2010)


Tabasco


Luzilá Gonçalves Ferreira


Lucila Nogueira nunca deixa de nos surpreender. Descrevendo o universo desde a casa da infância na Rua do Lima até sua passagem por Estocolmo; pela Espanha, onde encontrou a enigmática Dama de Elche; em La Rochelle, na França; em Coimbra, na Guatemala, esta cidadã do mundo nos entrega uma poesia sensível, inteligente, leitura nova de paisagens, gentes, coisas, que descobre e nos faz descobrir, convite à partilha fraterna de experiências vividas ou imaginadas.

Tabasco, seu último livro, relato comovido de uma viagem em parte real, em parte sonhada, à América Latina, a partir de uma estada no México, retoma e relê nomes de cidades, lugarejos, civilizações, personagens, que constroem ou construíram o continente, a Malinche, Cortez, Juan Grijalva, Carlos Pellicer, Borges, Cortazar. Neles o passado é um tempo de inocência que a poesia reencontra. "Chego a Villahermosa como quem chega ao Éden primordial / e sabe do poder da água e da chuva." A história do continente é recuperada em suas dores, injustiças, mas também na beleza que conservou intacta a memória dos Maias, Incas, Aztecas.

Como imaginar a viagem daqueles que há mais de 3 mil anos chegaram de longe, atravessaram o estreito de Bering e ensinaram ao mundo "a disciplina para enfrentar a dor"? E como não se comover quando uma sábia alegria de viver é o quinhão de seus descendentes, enquanto "a liberdade chega envolta em perplexidade" do outro lado do continente onde é noite.

Tabasco foi proposto por seu editor a concorrer ao Prêmio Portugal Telecom. Uma proposta justa, que alegra os leitores dessa escritora que construiu ao longo dos anos uma obra que diz muito de nossas inquietações a todos, que nos obriga a reflexões enquanto seres humanos inseridos num aqui e agora difícil, problemático, através de uma fala exigente, rica, eficaz. Estamos torcendo por você, Lucila.