Friday, February 08, 2008

MAR CAMONIANO


Painel de Camões no GPL de Salvador

MAR CAMONIANO

LUCILA NOGUEIRA



I

O mar que não pediste

tu cantaste
água partida


à proa do navio
mar de naufrágio


como o teu destino
o mar de Goa

Macau e Moçambique

só bastavam

as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao pássaro camão

ao cristão novo
guiado pelo sonho

em desmantelo

só bastavam

as águas do Mondego
ao cavaleiro errante

ao peregrino
saudoso injustiçado

entristecido
a vida consumida

no desterro

degredada visão

desordenada
o caos interior

o desconcerto
alma cativa

toda em carne viva
as mãos vazias

face sem espelho

ai colonizador

desamparado
expulso de sua pátria

ai como dói
vagando pelas águas

sem vontade
anônimo instrumento

de um algoz
ai vento ai porto

ai ondas turbulentas
ai viagem sem data

de voltar
ai colonizador

desamparado
depois de morto

celebrado herói
perseguido excluído

ignorado
lembrando Portugal

pelo convés
do sofrimento

construiu um mundo
tão belo

entre pessoas tão cruéis
expulso do país

que tanto amava
vai contar sua história

sem rancor
que mar há de trazer

tudo de volta
os dias de inocência

nunca mais
espíritos convulsos

leis espúrias
massacraram teus sonhos

e ilusões
da gruta de Macau

ao sol da África
Lisboa mereceu

o teu perdão ?

que mar há de trazer

tudo de volta
o mal que te fizeram

vingarás ?
navegador dos mundos


do Oriente
um dia à tua terra


voltarás ?


que mar há de trazer


tudo de volta
se o mar te deram


como outra prisão
ai vento ai porto


ai ondas turbulentas
desmoronando

o tempo linear

ai colonizador

desamparado
tremendo como Inês

entre os leões
pedindo piedade

a seus carrascos
tratado sem respeito

como um cão

chamo os desesperados

neste instante
que a ti só chegam

os que sofrem muito
segundo o grau de amor

que inda tiverem
para escutar

teus brados e queixumes

o mar que não pediste

tu cantaste
só bastavam

as águas do Mondego
ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao fundador

da língua portuguesa


I I


Os romanos diziam

que o poema
é como uma viagem

de navio
e assim tu embarcaste

entre perigos
obedecendo

à força do destino
do amor de Violante

separado
a sensação de perda

o atravessa
vai partindo o poeta

com seu fado
as ondas são seu triste


respirar
vai humilhado

vai tão abatido
ignorando

a glória após a vida
dura e fugaz

desânimo infinito
sobre as águas um sol

segue escondido
vai partindo o poeta

vai partindo
vai enfrentar a morte

o padecer
o fogo de Santelmo

a tromba d ‘água
a fome e a miséria

vai sofrer
a quem amaste tanto

diz-me agora
o amor que te perdeu

que nome tem ?
o amor por que tu foste

desterrado
a pena de degredo

foi por quem ?

navios a pano

chorem timoneiros
ao invés de cantar

sempre ao sair
que está partindo agora

para o exílio
vida mais triste

que jamais se viu


I I I


Manhã na Índia

ao longo do rio Ganges
por dezessete anos

vou vagar
nau golpeada

voz submarina
o mal de ser sozinho

desfrutar

esta cidade é Goa

sobre o Índico
aqui estou

cabo de Guardafui
escrevo uma canção

e uma elegia
e publico uma ode

e tomo vinho

digo minha odisséia

em minha lira
meu desabafo

em cantos dividido
essa história que conto

oitava rima
narra acima de tudo

a minha vida

meu poema da Índia

minha lenda
nada do que eu vivi

te esqueceu
vida errante

meu drama em desatino
ilícito desejo

me perdeu




IV




O teu poema ateu

ganhou o mundo
conseguiu iludir

a inquisição
teu degredo foi árduo

e foi profundo
mas deu sentido

à palavra amor


V

Do mar da Índia

vou ao mar da China
vou morar em um barco

de Macau
uma rua

com grades de madeira
em terras do Oriente

é Portugal

eu prefiro esta gruta

estes penedos
as entranhas da pedra

e sua voz
eu prefiro estas redes

e o destino
improvável das pérolas

no mar
o meu corpo sem corpo

o céu sem asas
o consolo budista

de não ser
eu prefiro esta gruta

e esta poesia
coroando o meu sono

português


V I


D. Manuel sonhou

fez-se a viagem
remando sem cessar

ao Preste João
e o que era uma utopia

foi verdade
Bartolomeu e Gama

a fé venceu
do cabo das Tormentas

dá a volta
ao porto de Sofala

Calicute
a rota em verso

de Malemo Cana
sem ele quem havia

de chegar ?

V I I

Quem saberia enfim

dessa empreitada
não houvesse tua voz

para narrar ?
grandeza anterior

à frota escrava
saber quem haveria

sem tua voz ?

e Gama era um pirata

ou desterrado
aos olhos de outros reis

orientais
que o julgaram tão pobre

e à sua esquadra
ao ver os seus presentes

sem valor ?

tu que fizeste Gama

um Enéias
magia secular

de tua visão
disseste em odisséia

a tua lira
por tua causa

vive Portugal


V I I I

Morreste com teu povo

e lhe deixaste
obra de gênio

em troca da pensão
e nela o julgamento

da viagem
o velho do Restelo

é tua voz

condenando a cobiça

a glória a fama
a maldição maior

do teu penar
e Felipe domina

a Lusitânia
primeira ordem:

visitar Camões

es muerto mi senõr

dicem vassalos
su corazón rompido

por mui largo
mas su poesia vive


hasta lo eterno
asi cual oceano


y imenso cielo


I X


É preciso morrer

para estar vivo
dentro da laje

hás de ser aplaudido
o governo despreza

o gênio em vida
quando morre

se cobre com o seu brilho

e o seu dia de morte

é data cívica
como se isso apagasse

a injustiça
não sabem quando nasce

e em que cidade
foi Lisboa Coimbra

ou Santarém ?

ai cidade do Porto

ai sal da Régua
água do Douro

que me viu nascer
eu vim só te fazer

a confidência
o meu sangue galego

vim rever

mundo celta

de filtros e de fadas
enquanto choro as mágoas

na canção
as naus estão sonhando

ser estrelas
como Argos se tornou

constelação


X

Quem és tu

me perguntas entre as eras
quem és tu

que os meus versos estremecem ?

sou o mar favorável

o mar adverso
sou os pólos do mundo

que degelam

sou Calpe e sou Abila

torres de Hércules
sou o segredo

que te fez poeta

sou o mar que não pediste

mas cantaste
só bastavam

as águas do Mondego

ao plebeu ao bastardo

ao de um só olho
ao fundador

da língua portuguesa
CANTIGA DE AMIGO I
OU AO LADO DO BAR GARAGEM HAVIA UMA PONTE DE VAN GOGH


ontem quis me entregar à alegria e quase ao acaso
saí com o meu leque imenso vermelho de Madame Butterfly
e depois de cantar ao microfone o princípio de Summertime eu me deixei levar a um lugar onde há muito queria estar e na hora que entrei ali mesmo no escuro do som um fauno de quase dois metros gritou meu nome e ficamos dançando twist descendo até o chão
nesse bar sem luxo como os que conheci na Colômbia depois chegou um outro sátiro que ainda não me conhecia e talvez por isso mesmo me chamou logo ao andar de cima eu confidenciei ao meu amigo essa proposta com ironia
mas o amigo não entendeu e quis subir na frente e quis ir olhar
e voltou falando que era apenas um acampamento de sofás foi quando na calçada não sei porque me vieram apresentar
uma versão do Tadzio de Visconti em plena Veneza tropical eu era apenas uma ex-colecionadora diante de uma tela presa no museu do Louvre
quando alguém jogou sua bebida em cima daquela pele que exaltava a vida desde uns cinco metros de distância em fatal pontaria de Robin Hood acontece que o Tadzio era tipo o ídolo daquele súbito Eden subterrâneo e logo vieram guardiães para agredir o agressor insensato que vestia camisa azul eu me coloquei Joana D 'Arc no centro do remoinho e do túnel de Ernesto Sábato e tudo se acalmou na esquina de um bar de fim de noite em dia de sábado o céu amparava uma lua bêbada sobre as manchas da pantera
no colar e no voile transparente que fazia a valquíria voar
eu lembrei da Sala de Reboco quando o aventureiro de Estocolmo
repentinamente pareceu querer descer em direção ao rio silencioso pelas suas margens teciam alamedas muitas plantas e jardins que olhávamos todos de pé com saudade da taça do Graal cheguei em casa com a manhã nos olhos e na barra da túnica
e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas para recordar
que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh



aos 28 anos

Wednesday, February 06, 2008

anos 60 e 70 me chamavam de SISSI


já era dark em 1986


por que a semelhança ?


A cigana de Franz Hals


fiquei impressionada quando me mostraram o quadro em 1971

depois fiquei sabendo da emigração portuguesa para a Holanda

Tuesday, February 05, 2008

POESIA EM MEDELLIN DE LUCILA NOGUEIRA

PARA REINVENTAR A ESTÉTICA DO DESEJO :POESIA EM MEDELLIN
André Cervinskis*

http://www.youtube.com/watch?v=0ghblS2DTL4

Quando pensamos que Lucila Nogueira já nos presenteou com todas as suas performances poéticas, surge sua mais recente obra, Poesia em Medellín. Ela o compôs para cumprir as exigências de sua participação no XVI Festival internacional de Poesia de Medellín, organizado pela revista de poesia colombiana Prometeo. Como bem lembrou a introdução do seu livro, este festival é o maior do mundo na categoria poesia e já levou à cidade nomes importantes contemporâneos, como o Prêmio Nobel de Literatura 1986 Wole Soyinka(Nigéria),Ernesto Cardenal e Gioconda Beli (Nicarágua), Marisol Quiroga (Bolívia), Fabian Casas (Argentina), Jorge Cocom Pech (Nação Maya, México). Lucila Nogueira foi a primeira poeta mulher a ser convidada para o festival representando nosso país.
O livro, de 65 páginas, capa vermelha, com um rosto sensual da autora, é uma coletânea de poemas eróticos de sua carreira, com tradução para o espanhol pelo poeta colombiano Elkin Obregón, tradutor de Nélida Piñon e Rubem Fonseca, entre outros autores brasileiros. Há, contudo, um poema inédito, que eu consideraria o principal de sua obra, pela especial eficácia na abordagem do tema erótico, intitulado: Mas não demores tanto. Ele nos faz passear pelo lirismo nogueiriano com versos bastante ousados: fecha os olhos e pensa no que quiseres/ enquanto as mãos e as bocas cumprem roteiros de miragens desérticas (...).
Mas não somente nesse poema a força do erótico se revela intensamente; em outros , lê-se: eu sou somente o espasmo de teu corpo (...) sou ímpeto solar e esse exagero/ de carne em transe que te aplaca os nervos. (Identidade) (...) talássico e mimético gigante/ atravessando a sede em minhas pernas (Fogo de Santelmo I). (...) Em minha pele ávida de feras/ em meus canais de fogo alucinante/ e mergulhando e flutuando e sempre/ indo e voltando e logo regressando/ teus pêlos minha flora num perplexo/ contínuo inaugurar de força estranha... (Fogo de Santelmo – II); seios queimando sob o odor da chuva (Nave no dilúvio).
Etimologicamente, erotismo deriva de Eros, o deus do amor. Segundo os estudiosos modernos, o erotismo é a espiritualização da carne e sua conversão em cultura - logo, a transcendência é a sua dimensão natural.Veja-se que erotismo em literatura não é um tema novo. Existe desde a antiguidade. Na Grécia, Platão, em seu O Banquete, o celebrou além dos limites da heterossexualidade. Aristófanes lega ao futuro comédias de extrema licenciosidade. As peças de sátiros, escritas por Ésquilo, Sófocles e Aristóteles, como complementos de suas tragédias, também eram extremamente livres em matéria sexual. Uma das lendas mais populares entre os gregos era a de que, certa noite, Hércules teria mantido relações sexuais satisfatórias com 49 das 50 filhas de Téspius, Rei da Beócia. Em Roma, o sexo representava papel essencial não só para Ovídio. Está presente também nas obras de Marcial, Juvenal, Ausone, Suetônio, Petrônio e Horácio, além de Apuleio, autor de O Asno de Ouro, uma das maiores novelas picarescas de todos os tempos. Considerado como o predecessor do romance moderno. Satiricon, de Petronius, foi escrito nos primeiros anos da era cristã, durante o governo do imperador Nero. A obra descreve as andanças de dois jovens na alta sociedade da época. Orgias, prostituição masculina, pederastia, incestos, homossexualidade, são alguns dos temas abordados por Petronius. Dezoito séculos depois, o romano Fellini faria um belo filme com essa história.
Condenados ou consagrados, os escritores, especialmente poetas, sempre transgrediram as regras sociais do amor burguês bem comportado, com desejos velados. Os autores contemporâneos, tentando surpreender o leitor, por vezes chegam a vulgarizar seus versos. Não acontece isso, porém, com Lucila Nogueira. Como afirma Floriano Martins, em comentário à obra da autora (Nogueira, 2006, contracapa): “o jogo que faz entre corpos visíveis e invisíveis dá ao erotismo da poesia de Lucila Nogueira uma alta voltagem que o aproxima do plano mítico sem, contudo, perder relação intensa com o carnal, com a realidade que corresponde a cada desejo, em vertigem e desalento. Trata-se, portanto, de uma poesia enriquecida por essa compreensão do mito como algo arraigado à nossa vida, e cuja perspectiva erótica o torna ainda mais fascinante”.
Nesse sentido, percebemos que seus versos procuram, sim, no corpo um canal para a consumação do desejo, mas numa estética lírica superior: O corpo – dizem – já não será o mesmo,/ desesperadamente eu te desejo/ enquanto navego rochas subterrâneas/ à beira da consciência humana. (Mas não demores tanto). Sérgio, eu te amo, exausta e obsessiva/ sobre o teu corpo em êxtase vencida. (O espírito das fadas). Por vezes, o erotismo é velado: (...) o monstro me arrebata novamente/terrível seu olhar sobre o meu corpo./ Em mim sempre se instala a sua sede/e eu resto umedecida altiva e mansa (O monstro arrebata novamente). A autora explicita nalguns trechos sem receios, seu desejo violento: no meu corpo invisível tu derramas/ geleiras, bulevares e castelos./ e a multidão latino-americana/ explode a sua fome no meu sexo./ Prepara um orgasmo eterno em que se altere/ a rotação das gerações em leste. (Ando invisível pelo apartamento). Desenvolve um erotismo elegante: sou a rudeza que te imobiliza/e essa doçura armada de improviso... (Identidade). O erotismo às vezes se revela pleno: enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios...; e as gárgulas de Notre Dame/ contornaram os mamilos/ como breves e clandestinos fogos-fátuos (Mas não demores tanto). Posições e práticas sexuais pouco convencionais não causam falsos pudores na autora: quando tua boca recobrir o seio... (Mas não demores tanto); deitada estou de bruços/ à flor dos aquedutos (Ó homens doces); você me quer de costas/ por dentro do edredon (Desespero blue). Mas às vezes se esconde numa máscara de timidez: todos eram demais e não sabiam/ mas quando tu me pegaste forte eu me surpreendi/ tímida/ e até hoje estou fugindo entre palmeiras/ pelas estradas líquidas do vinho e do néon (Mas não demores tanto). Temos aqui um efeito metafórico interessante: se a palmeira é exuberante por natureza, também pode servir para esconder. O néon é usado para nos fazer enxergar objetos em noites escuras, mas somente o que nos interessa revelar. Como o amor de adolescente: ele fechou a porta/ da casa de Granito/ o banho de tonel/ no fundo do quintal/ guardou minha nudez/ pelo lado de fora... (Se pode até ser dois); enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância/ que uma água subitamente morna quase apagou. (Mas não demores tanto).
A voz lírica de Lucila não renuncia ao papel de amante: tudo o que eu aprendi foi só para enlouquecer-te/ tira logo do meu corpo a túnica transparente (Poema X - de Refletores); porque eu sei satisfazer a tua carne/ mesmo assim aérea na alucinação (Despedaça-me); não sabem que sou santa/ querem dormir comigo e ter circuitos/ querem tremer nos ângulos agudos/ não sabem que sou santa (Poema IV - de Refletores). Reconhece, porém, suas fragilidades e o que passou para chegar a essa liberdade: sou a menina frágil que resiste/ e a que conquista o mundo, mas é triste/ e esse peito doente, estiolado/ a suportar o mundo em intervalos (Identidade). Num trecho do poema Mas não demores tanto, a autora trabalha com profunda sensibilidade o tema amor e morte; a blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia/ assassinada numa em campo de concentração. (...) A blusa de cetim/ deixa entrever a parte morta da carne branca/ sob a luz do globo fosforescente. Explicita-se, nessa obra, uma delgada sensualidade, com recato e o pudor de outras épocas: e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro/ tem ainda um oceano de lantejoulas/ refletindo a vibração da pele.
Interessante como a autora consegue trabalhar o erotismo em temas pouco convencionais, como a doença e a morte. Para Lucila, mesmo passiva, a mulher pode mostrar-se sensual, como nesse poema cujo título homenageia um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, Fale com ela: mulher que nunca fala/ isso é afrodisíaco/ mulher que não se mexe/ e s e entrega passiva/ mulher que está em coma/ pode voltar á vida/ desde que alguém lhe fale/ e queira ser ouvida. Num outro trecho do mesmo poema, o perigo inspira jogos sensuais: A trapezista continuará dormindo/ completamente nua/ na jaula dos leões.
Algumas temáticas recorrentes em outros livros não escapam dessa incursão literária pelo erotismo. O interculturalismo é um deles: o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada/ desde os coqueiros do Recife/ até os verdes pinheiros galegos/ que deram sombra aos romances de meus bisavós; (...) para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro (Mas não demores tanto). Não custa lembrar a origem luso-galego-brasileira de Nogueira, bem como suas incursões familiares, inclusive literárias, por outras culturas, como a escandinava (Estocolmo, 2004). A presença mitológica em sua obra não poderia prescindir o deus greco-romano do vinho e uma das festas em que é invocado, o carnaval: ele era como a voz rouca de Dioniso, fazendo soar as teclas do piano austríaco/ abandonado na passarela vermelha/ de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus (Mas não demores tanto). Seres lendários povoam eroticamente seus versos: mas eu vi se namorando/ os centauros e as sereias/ fazendo um amor na praia/ bem ao gosto dos mortais (Disse-me um dia Clarice). O esoterismo transfigura-se num verso cabalístico: e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços/ até o sol secar as sete saias/ tiradas ao som de sete violinos/ durante as sete noites de encantação (Mas não demores tanto).
O gozo aparece na obra de Lucila de forma contundente, revirando os elementos da natureza: dragão invisível/ língua demoníaca/ união clandestina/ avesso encantamento/ abismo vulcânico/ onde a partitura se desfez em notas a pauta (Mas não demores tanto); ventosa universal nadando leve/ o céu se precipita do meu sexo/ entranha nervo córtex voltagem/ arrasto os horizontes da cidade (Decisão). No momento do orgasmo, sente-se a condição divina que invade a todos: Concha dilacerada, espada bruta (...) sou mais forte que os deuses nessa hora (Nave do dilúvio). A autora sabe que o amor não aguarda os amanhãs: Tudo agora se tornou tão urgente; mas não demores tanto (Mas não demores tanto). Em diversos trechos,a narradora poética de Lucila apresenta sua ânsia por amar: gosto de amar assim avidamente/ fogueira terremoto tempestade... (Decisão); (...) e sou febre incessante, obsessiva/ numa ansiedade para além da vida (Identidade). Mas se deve fugir aos estereótipos: porque naquele tempo/ o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente indu (Mas não demores tanto).
Focando no tema do desejo, a autora nos leva a concluir que o amor se constrói com cumplicidade e amadurecimento: descobre quanto dura o seu fascínio/ o ímpeto sagrado de tua pele/ pois o amor, se é senhor, não sai vencido/ o sangue é breve, a morte muito longa/ e o futuro uma carta do destino (Tentação); que amar é arte/ de se fazer presente/ e tudo aquilo que precisamos/ é de poesia/ loucura e êxtase/ no ato heróico de reabrir as portas/ da carne mansa que se esquivou. (Mas não tardes tanto).
O amor é urgente. A poesia é urgente. Em Medellín como em Recife, faz-se necessário reinventar a estética do desejo.
FONTES
ALEXANDRIAN: Sade ou o Terror Sexual. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed.
DUEHREIN, E.: El Marques de Sade. Su Tempo. Su Vida. Su Obra. Madrid. s/d.
MORAES, E.: Sade: O Crime entre Amigos. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 245 - 254.
NOGUEIRA, Lucila. Poesia em Medellín. Tradução para o espanhol: Elkin Obregón. Recife: Ed. do autor, 2006.
_______________. Estocolmo. Recife: Ed. Livrorápido, 2004, 2ª edição.
PRADO JR., B.: A Filosofia das Luzes e as Metamorfoses do Espírito Libertino. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 43 - 58.
TROUSSON, R.: Romance e Libertinagem no séc. XVII na França. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 165 - 182
http://camanarede.terra.com.br/literatura/literatura_05.htm
http://mulher.sapo.pt/J43/251596.html

* ANDRÉ CERVINSKIS é escritor e ensaísta

Monday, February 04, 2008


GYLLENE





Tinha que estar aqui neste momento
e ver tua face presa no mosaico
assim como estou presa nesta vida
sem conseguir passar ao outro lado

Tinha que estar aqui neste momento
sem qualquer testemunha do passado
e assim como estou presa nesta vida
ver tua face assim presa no mosaico
.
A rainha do lago Mälaren





Ela se ergueu muito viva
traços trêmulos na água
os seus braços transparentes
ela me estende e me a
ESTOCOLMO, de Lucila Nogueira


Personalidade pernambucana plural, Lucila Nogueira é reconhecida sobretudo como poeta e ensaísta. Doutora em Letras (UFRJ) e professora de Cursos de Pós-Graduação e Graduação (UFPE), é também editora de revistas e livros, e promotora e colaboradora de importantes eventos no país e no exterior. Nome singular nas letras brasileiras, tem 15 livros de poesia publicados, entre eles uma obra com edição portuguesa, Zinganares (objeto, inclusive, de dissertação de Mestrado na PUCRS), e outras duas com traduções para o francês (Imilce, concluída, e A quarta forma do delírio, em andamento). Por duas vezes mereceu o Prêmio Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco: em 1978, com Almenara, e, em 1986, com Quasar.
Falar de Lucila Nogueira significa falar de complexidade e fascinação, dada sua originalidade temática exclusiva e o envolvimento que geram no receptor os textos que ela produz.
Um caleidoscópio infindável cabe em Estocolmo, sua última publicação poética (Recife: Ed. do Autor, 2004). O livro funciona para o leitor como um espaço para auto-avaliação e reencontro com mitologias de reflexão e despedida. Organiza-se em quatro partes, cada uma com 10 poemas. A qualidade estética prevalece desde a capa e abas, com textos e fotos, até a apresentação interna da edição.
Os poemas têm títulos instigantes e mais ainda parecem ter na Parte I. Nela, os textos são poético-narrativos, encantatórios e com teor mítico-místico perturbante. Presencia-se um devaneio lúcido numa outra dimensão de percepção, ainda que inspirado na beleza plástica referencial de uma cidade como Estocolmo e em mitos nórdicos escandinavos, como Odin e as valquírias. A elaboração dos textos, a exemplo da esmerada figuração da linguagem e das sinestesias, é fundamental para o efeito lírico-encantatório:

o céu soltou-se da terra ao som de mil violinos
e eu entro e saio da vida como os deuses ancestrais
fez-se jovem para sempre meu corpo feito das ilhas
esplendor dessa Estocolmo em marina de cristal
(“Toda no papel de prata” – p.15)

O fascínio da imaginação e das indagações se expande quando são consideradas as origens e os fins da existência, o ser e o nada. O devaneio é filosófico:

esta é a passagem do mundo subterrâneo
as almas esperando novos corpos
quem abre os portais da morte
abre também da vida as portas
(“Graal” – p.16)

Poesia profética, centra, na imagem da “sibila”, a clarividência que revela mitos ancestrais. Nesse âmbito, funde níveis díspares do conhecimento e personifica no eu poético feminino o espaço que o ser tem para manifestar-se na plenitude e também na consciência crítica social.
O ritmo dos versos Intensifica o efeito fruitivo da leitura. Os poemas de versos longos (14 e 15 sílabas) engendram um ritmo melódico de tonalidades alternadas e crescentes, que seduzem o ouvido e persuadem o leitor para deleitar-se com o inusitado, agressivo e fantástico que vai sendo proferido nos textos. Um exemplo pode ser lido em “Völva II” (p.19):

eu sou um anjo clandestino pai de Cristo e João Batista
eu teatro solitário de metáfora em ruína
eu estrofe desterrada num dicionário viking
quero as estantes vazias da ditadura dos livros

coberta por um lençol de seda e algodão egípcio
nossa diva está dormindo com saudades da Bolívia
seu gosto de anis / canela e cravo / açúcar / gengibre
congênita embriaguez de outros mundos nas pupilas

No poema final da primeira série do livro, “O horror da nossa época”, retorna a figura da “sibila”. Ela aparece em meio a uma temática apocalíptica, exaurida de suas profecias e dormindo em sono mitológico eterno. Tal estado não deverá ser interrompido por ninguém, para que a diva seja poupada da clarividência do brutal futuro.
Na Parte II, mantém-se o tom de poesia misteriosa e epifânica, e também a vinculação permanente do eu poético com a temporalidade (passado ancestral, presente e futuro) e a intemporalidade. O conhecimento intuitivo faz parte dessa forma de estar no mundo e se sobrepõe, muitas vezes, ao racional. Em “Uma visão” e em “Tudo é tangível”, verifica-se a permeabilidade do sujeito lírico aos diferentes níveis de percepção. Na estrofe seguinte encontra-se exemplo para a afirmação:

Tudo é tangível
os visitantes caminham entre nós
ouço as vozes na hora do crepúsculo
poemas estrangeiros
ecoando no mar
o outro mundo
a máquina de voar
agora converso com os anjos do estuário
(p.26)
A diretriz crítica, concomitante à insólita densidade reflexiva, recrudesce no livro quando são evocadas e homenageadas personalidades suecas como o cineasta Bergman, o escritor e dramaturgo Strindberg e, também, o cientista e filósofo Swedenborg. Resgatando passagens de suas vidas e aludindo intertextualmente às suas obras, o eu poético identifica-se a concepções humanitárias e paranormais a eles relacionadas.
Uma unidade na obra vai sendo traçada pelo paralelismo que se estabelece entre o desvelamento progressivo de âmbitos incomuns de percepção e a evolução da consciência crítica do eu lírico, que não admite diferenças e injustiças sociais.
A poesia de Estocolmo mantém uma linha de reflexão filosófica que inclui sempre o sujeito poético na trajetória humana universal e dentro do pensamento mítico de todas as nacionalidades. Esse imergir solidário e intemporal nos diferentes espaços e cosmogonias familiariza o sujeito com a diversidade e permite seu emergir comprometido com cada nova situação. Em “Mitos nórdicos nas ruas de Estocolmo” (p.32), poema que fecha o segundo conjunto de textos, lê-se:

Encontro mitos nórdicos nas ruas de Estocolmo
divindades me contemplam sem palavras sob o sol
aqui estou na partida de xadrez imprevisível
aqui estou suspensa mais humana e ágil
no ponto em que o lago Mälaren encontra o mar Báltico

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

como o navio Vasa retorno à superfície
após mais de três séculos no fundo do mar
descobrirão um dia dentro deste lago
meu testamento feito há tanto tempo atrás

A subjetividade transcendente do sujeito continua a ser iluminada nos poemas da Parte III, que a relacionam a novos elementos do cenário sueco:

Ilhas de Estocolmo na primavera
sentada no convés de Södermalm
penso no estreito contato magnético das coisas etéreas
que se desprendem materializadas do meu cérebro
(“Södermalm” – p.38)

A permanência do lirismo e da abstração é constante, mas o direcionamento dos textos aponta para o registro objetivo de pessoas, espaços e situação social da cidade de Estocolmo. E a visão para esse contexto é de aplauso, seja pelo exemplo de autenticidade que é dado pelos jovens, seja pela experiência da paz, segurança e direitos, que se mostram garantidos ao cidadão que lá se encontra. Esse quadro descritivo e de contemplação funciona como contraponto à situação invertida que vigora no Brasil, denunciada em poemas como “Carta ao Brasil” (p.43) e “Carta ao Recife” (p.44). Neles são dadas notícias ao país e à capital pernambucana de que há lugares no mundo em que os serviços públicos funcionam e a violência praticamente não existe.
A IV Parte do livro detém-se, de início, também em aspectos referenciais, sendo o olhar dirigido para Linköping, cidade histórica da Suécia meridional, de onde são descritos, com admiração, lugares como o “pavilhão chinês” (p.52) e a “floresta de Ryd” (p.53). O segundo poema dessa série final ressalta, em meio ao espaço medieval da catedral da cidade, a plena identificação do sujeito poético com a história escandinava:

Aqui eu vi a sagração do rei Valdemar no ano de 1251
Eu era uma princesa qualquer que fugia dos bosques em torno do castelo
E colhia flores e tocava flauta e sonhava na neve com toda a minha
Imaginação
(“Na catedral de Linköping” – p.51)
Estocolmo pode ser lido na vertente do lirismo confessional, onde os poemas são como que depoimentos de um eu poético que se expõe na cena. A declaração de chegar a uma consciência amadurecida e sofrida, ou a uma “nova lucidez”, é vigorosa no livro e pode ser constatada em textos como “Não posso ficar entediada” (p.54) e Runas em ruína” (p.57). A declaração desse estágio de compreensão prepara o leitor para o tom profético e de fatalidade que marca os últimos poemas do livro: a presença inevitável da “dama”, que se mostra muito próxima do sujeito lírico. Em “Toque em mim”, lê-se que ... a dama me espera na curva de qualquer esquina (p.58); em “Antes que tudo em mim seja elegia”, ... a dama já começa a rodear-me os passos (p.59). O final do livro metaforiza o final da existência, convertendo em passado o que era vida, em tempo presente, no papel.
O último poema, “ O cérebro não registra” (p.60), consiste numa metapoesia dolorida, que costura no ofício da escrita lírica um sentido infinitamente renovável para a condição de estar vivo, e, ao mesmo tempo, vazio, para a humana condição final. O impasse fica declarado, e a consciência proclama implicitamente a ausência de saídas.
Assim, falar de Lucila Nogueira, de suas obras e especialmente de Estocolmo, significa falar de complexidade e fascinação. Significa falar de uma poesia brasileira originalíssima, madura e consciente, edificada sobre sólida lírica mitológica e capaz de ultrapassar, com mestria, os limites que normalmente reduzem os seres humanos a meras unidades isoladas e convencionais.


LÍGIA MILITZ DA COSTA
Universidade de Cruz Alta – RSbraça
entrega-me um cofre estranho
sob o sol da Escandinávia
deixa que agora eu retorne
ela me diz sem palavras
ao meu mundo submarino
ao solar da eternidade
fico de novo sozinha
às margens do lago Malären
e abro o cofre tão antigo
por tanto tempo guardado
não são moedas nem jóias:
só meu nome em letras góticas.



Era 2004 e voltei em 2006 para o nascimento de Alexander. Não pude assistir nada e ia visitá-lo
sempre à tarde sem evitar lembrar do poema
Descontrolem-se



acredito que os meus sonhos são revelações
mas guardarei da mediocridade o segredo do milagre
porque sempre foi tudo espera e enorme sobressalto
recoberta de algas retornarei um dia ao túmulo dentro do aquário
provocando-te impressão de eternidade

este poema é a metáfora da morte
barroco o meu cadáver na avenida
cercado pelos vivos de passagem

memória das coisas perdidas em velhos pátios circulares

o sonho de Balder
Odin suspenso nove noites em uma árvore
mas o paganismo não tinha missionários nem tampouco mártires
lembrem os visigodos escandinavos com suas fábulas mágicas

e porque agora vocês já nada mais sabem é preciso que eu grite de improviso

descontrolem-se
sejam apaixonados como os mitos nórdicos
mergulhem nos canais
delirem sob as pontes
embriaguem-se
e ressurjam molhados e selvagens
dançando completamente nus nas ruas centenárias
porque até onde se vai em liberdade
não existe mais volta
descontrolem-se
Ninguém nos leva a sério, Swedenborg





Swedenborg
você revelou o segredo de Ulrica a seu irmão
descobrindo o lugar secreto de Marteville
e narrou minuciosamente o incêndio de Estocolmo
estando a 300 milhas inglesas de lá em Gotemburgo
de onde viu sua própria casa ameaçada pelo fogo

mas ninguém nos leva a sério, Swedenborg
a terra perde velocidade
e se derrete a calota polar
nós sabemos que a lua não é um satélite
e a sede da alma não está no corpo humano

todos sabem que mudou o nível dos oceanos
e apesar de nossa intimidade com o mundo elemental
ninguém nos leva a sério, Swedenborg
a terra perde velocidade
mas ninguém nos quer acreditar

* * *

O livro dos sonhos de Strindberg





Não acho o teu drömmar por estas ruas
te imagino andando dias inteiros no arquipélago de Kimemendö
a pensar nos crimes não previstos no código penal
mas que dão origem a uma culpa tortuosa
que não tem perdão no código religioso

a tempestade
sonata dos espectros

teatro onírico
teatro do sacrifício

solilóquio de interna dissonância
corpo finito matéria do infinito

teatro íntimo de Strindberg

sentir pensar agir:
sincronia de abismos

não acho o teu drömmar por estas ruas
mas te vejo completo em cada face de paisagens interiores

* * *

O país de Bergman





queria que este poema tivesse a densidade do teu sonho
e a concretude do Bergman criança em Uppsala
onde aprendeu sobre a inabilidade das pessoas para a convivência familiar

queria que os meus versos traduzissem o consolo da angústia fechada em si mesma
e da falta de amor que nos levou à poesia e ao cinema como obsessão
com a súbita explosão de verdades guardadas silenciosamente na memória perdida

queria que os pais nos tivessem posto no colo com maior ternura
e receberíamos talvez com suavidade o ríspido comando da máquina social
numa recuperação mais rápida diante da crueldade dos analfabetos emocionais

a luz que vejo além da vidraça é o caminho do sol filtrado pela vegetação
na parte exterior à casa as crianças se balançam como pêndulos atraídos às nuvens
e sabemos ao olhar as flores na grama que o paraíso e o inferno estão apenas dentro de nós

morangos silvestres/gritos e sussurros/sonata de outono/o sétimo selo
grandioso em face da miséria em torno foi o teu destaque para a interioridade humana
e eu escrevo em teu país estas palavras que se querem imagens das nossas almas

PRIMEIRA VEZ EM ESTOCOLMO 2004






Södermal





ilhas de Estocolmo na primavera
sentada no convés em Södermal
penso no estreito contato magnético das coisas etéreas
que se desprendem materializadas do meu cérebro

quarenta e sete noites sem dormir inteiramente

e nenhuma palavra que mude a direção da minha vida
vou ser presa em flagrante se mostrar que sou sensível
mas alguém deveria se importar verdadeiramente comigo
enquanto eu triste envio postais alegres aos amores impossíveis



CINCO RESPOSTAS SEM PERGUNTAS

OU

A ENTREVISTA QUE FICOU INÉDITA



Quando de seu lançamento, em 2004(Festival Recifense de Literatura-Livraria Cultura), respondi algumas perguntas a um jornalista amigo, para divulgação do livro.Questões adversas de espaço em uma cidade onde há muitos anos não mais existem suplementos literários o forçaram à opção de transformar a entrevista em uma notícia reduzida. Decido divulgá-la aqui, acreditando que pode servir de indicativo de leitura.As respostas surgem solitárias, desacompanhadas das perguntas, que se perderam eletronicamente. Proponho o exercício lúdico de adivinhá-las.


1 – Se o conceito de viagem é meta-geográfico, o deslocamento entre fronteiras se coaduna com um certo conceito de errância comum a muitos artistas, espírito de aventura e desafio de perigos, busca de paragens e rostos desconhecidos. A viagem está presente na pesquisa filosófica, na arqueologia, nos vários campos do conhecimento.Ela permite o redimensionamento do mundo e da vida.
Que não se confunda o poeta-viajante com o mero turista : este último, uma presa fácil da comercialização e hostil a tudo o que não seja a vaidade do registro. Enquanto os viajantes são grandes solitários, os turistas não conseguem se movimentar sem estar em grupo e sem a monitoração de um guia.Viajar, na verdade, implica em deambular, vagar, sair de si mesmo para regressar talvez mais completo e mais nítido.
As peregrinações são freqüentes em literatura, havendo dado causa a muitos livros. É a linhagem de Camões, de Apolônio de Rodes, de Homero, de Vergílio. Tenho escrito vários livros de poesia provocados por viagens : Ainadamar, Ilaiana, Amaya, A Quarta Forma do Delírio. Também as Saetas de Sevilha, incluídas em Bastidores. O estranhamento da paisagem – que não é só física – sincroniza e sintoniza conexões inesperadas que podem resultar em poesia.


2 – Inicicialmente, a referência de uma cultura muito especial, a viking, de desbravadores dos mares, com a viagem na alma, tal como os portugueses de que tenho o sangue e que aqui chegaram em embarcações tão básicas , sem medo das tempestades e dos monstros marinhos. A terra de Strindberg. A capital do país de Bergman, Swedenborg, Par
Lakervitch.Terra de paisagem de conto de fadas, casas de madeira colorida cercadas por florestas de árvore de natal. De um país que venceu suas dificuldades com a pobreza e proporciona aos cidadãos grande parte dos serviços que justificam a constituição do Estado burocrático. Não se trata, contudo, de uma visão utopista : apenas as dificuldades ainda existentes foram reduzidas a um caráter mínimo, que o livro também registra. Acho que a cidade tem muita magia, especialmente em seu colorido. E o seu nome considero encantatório, sobretudo se penso na variação feminina.



3 – Estocolmo talvez seja tipo um panorama de meus livros anteriores. Nele você encontra amor, angústia, misticismo, referências míticas, denúncia social, registro étnico, interculturalismo. Refletores tem a histeria de um período de crise. A fúria obscura, a inssurreição dos sentidos. O decurso do tempo, a consciência da velhice. A decadência do corpo na pele ressequida. O sexo transformado em algo diverso do que era em seu início. Eu reagi com a poesia. Desespero Blue é quando a tempestade dá lugar à calmaria. Incorporei o recurso pós-moderno do diálogo com outros autores( Desdizeres ) e aí surge o Sentimento Súbito, em que assumo uma posição definitivamente contrária à secura construtivista/racionalista/minimalista de um certo tipo de poesia brasileira contemporânea, sustentada em epígonos de vanguardas envelhecidas. A dilaceração leva ao desnudamento radical da ferida, esse monólogo sopra de uma região onde se mesclam o dramático, o épico e o lírico, sendo a poesia uma confissão de vida. Estocolmo mantém a ligação com Refletores sem desprezar o interculturalismo da tetralogia ibérica anterior Nele também assumo de modo mais explícito as minhas vivências místicas. Se acrescento uma dicção talvez mais brasileira e cotidiana em alguns poemas, também passo a misturar o “sujo”com o sublime, a notícia de jornal com a referência erudita.



4 – O livro tem quatro partes : a primeira trata do plano mítico ; a segunda, do místico-erudito ; a terceira, do geográfico intimista ; na quarta a constatação da evidente brevidade da vida. Há uma queda brusca na metade do livro, uma ruptura da segunda para a terceira parte : não é só o avião que desce em Arlanda - dá-se a passagem do erudito para o empírico e uma lucidez como um relâmpago apaga as imagens do sonho e imprime palavras em carne viva.



5 – Quando empreendi a viagem e mudei minha vida, havia sempre um out-door na parada do ônibus de ida onde estava escrito : “volvo” . Era uma marca de automóveis e caminhões, mas eu viajava pensando no sentido espanhol e achava que aquilo era um signo de que eu iria voltar. De fato, quando chegava na parada do ônibus de retorno, estava o mesmo out-door, com a mesma palavra “volvo”: eu ligava novamente a idéia de volta, de repetir a viagem, o que na verdade fiz por vários anos. Quando desci no aeroporto sueco de Arlanda, a caminho do centro de Estocolmo, como dentro de um conto de Hoffmann lá estava, enorme, o mesmo “volvo” em um mesmo out-door e aí eu pensei : vai começar tudo de novo.
Nas noites solitárias de Linkoping, descobri que a versão feminina de “volvo”, no caso “volva” , quer dizer sibila, vidente, profetisa. O Voluspa, belo canto das Eddas, é “A Profecia da Vidente”: o deus nórdico Odin pede à sibila – que já se encontrava morta – para que regresse à vida e venha profetizar. Num processo de identificação, pensei, ou sou eu mesma, ou se trata dela, da Poesia, que Estocolmo veio ressuscitar. A Rainha do Lago Malaren que me entrega o cofre onde eu mesma estou dentro, como a taça do Graal que me devolvesse o meu próprio espírito

ESTOCOLMO, ITINERÁRIO E MITOLOGIA NÓRDICA


Você não sabe onde está





Você não sabe onde está
stand by
simulacro sagrado de alumínio
stand by
gelo seco no efeito deus ex-máquina
stand by
bêbado e drogado atravessa a rua ouvindo o rádio de pilha
stand by
quantos morreram hoje no Iraque, me diga
stand by
as velas estão acesas nos pubs de Estocolmo
stand by

então ele me abraçou e disse que eu era tudo
em meio àquela legião de sombras absurdas


ESTOCOLMO, ITINERÁRIO E MITOLOGIA NÓRDICA

André Cervinskis


Resultado de uma viagem empreendida à capital da Suécia, em 2004, esse livro faz-se adentrar nos recônditos da identidade nórdica, com elementos dos vikings, celtas e também greco-romanos, embora Lucila negue: Não posso ficar entediada/ porque não vim escrever sobre cidades ou mitologia escandinava (...) (NOGUEIRA, 2004, p. 54). A autora também se integra aos lugares da Suécia, como cidades e lagos da região: não acho o teu drömmar por essas ruas/ te imagino andando dias inteiros no arquipélago de Kimemendö (...) teatro íntimo de Strindberg ... (NOGUEIRA, 2004, p. 29); fico de novo sozinha/ às margens do lago Malären .. (idem, p. 13); museus de Skeppsholmen bairro de Södermalm/ é noite em Kalmar (...) de Mälmo a Gotemburgo paisagens de Dalarna/ na bolsa o manuscrito da Universidade de Uppsala... (idem, p. 32); e se nivelou à calçada do largo principal de Linköping ... (idem, p. 49).
Nogueira, assim, faz-se passear por paisagens inéditas desse país escandinavo: as pessoas cruzam o bosque de bicicleta/ para ir a Gamla Linköping passando pelas ruas que parecem/ de boneca ou de conto de fada ... (idem, p. 53); gosto das paredes vermelhas do pavilhão chinês/ suspenso entre os pinheiros de Ryd... (idem, p. 52). Fala, também, de personalidades importantes da Suécia, como Ingmar Bergman: queria que esse poema tivesse a densidade do teu sonho/ e a concretude do Bergman criança em Uppsala (...) e da falta de amor que nos levou à poesia e ao cinema como obsessão (idem, p. 28). Ou Ana Lindh: Ana Lindh foi esfaqueada na Nordisk Kompaniet, Gamla Stam de Estocolmo/ por um indivíduo vestindo roupa de camuflagem... (NOGUEIRA, p. 45)
Parece que a estada em um país estrangeiro permite à poeta ficar mais solta, em sua arte, a ponto de produzir poemas pós-modernos, ao modo dos de Refletores, livro anterior de 2002: você não sabe onde está/ stand by/ simulacro sagrado de alumínio/stand by/ (...) as velas estão acesas nos pubs de Estocolmo ... (idem, p. 41); ou mesmo versos dedicados aos punks: como são belos os punks nesse pedaço de rua/ cabelos rosa-choque/ laranja/ azul/verde/ lilás/ sentados na escadaria com piercings e tatuagens ouvindo música no gravador (...) são os punks de Estocolmo/ com tatuagens e piercings/ reinando na escadaria. (idem, p. 42). Versos que revelam o olhar atento da poetisa para as culturas urbanas, que, na Europa hodierna, não são mais tão marginais assim.
Todo o livro Estocolmo é uma tentativa de Lucila para nos apresentar a cultura e identidade dos povos nórdicos. Por meio de referências mitológicas, a autora revela as crenças e modos de ver o mundo dos descendentes dos vikings. E tudo isso utilizando-se da poesia, fazendo da literatura um passaporte intercultural. Durand (2002, p. 44) estabelece entre mito e poesia algumas semelhanças: ambos são metalinguagens, mas o mito por defeito lingüístico e excesso semântico e a poesia por excesso lingüístico e desorientação semântica(...). A poesia organiza metaforicamente um sistema de frases e de palavras. Seguindo esse conceito, Lucila translucida-se de sueca/escandinava para narrar em versos a História desse povo: aqui eu vi a saudação do rei Valdemar em 1251/ eu era uma princesa qualquer que fugia até os bosques em torno/ do castelo/ (...) deitada na invisível pedra dos vickings/ até hoje sob o retábulo de Alkmaar (NOGUEIRA, p. 51).
Para tanto, Lucila embarca no delírio dos deuses: dormi serenamente no barco vermelho de Malären/ ancorado no estuário não sei quanto tempo faz/ embalada pelo movimento da água parada do cais. (idem, p. 39); eu estátua tutelar dos deuses desconhecidos (idem, p. 12); e aconselha àquelas que querem despertar o oráculo: a sibila dormiu na eternidade (...)/ e deixem-na em seu sono mitológico/ distante do horror de nossa época (idem, p. 20). Lucila põe-se no lugar da sibila, para nos fazer adentrar no mundo escandinavo: eu ressurgi dos mortos tantas vezes/ ó profetas ó santos ó mártires/ sou rara testemunha à sombra das arcadas/sobre a pedra talhada à mão eu emergi diante dos vivos/ todas as vezes em que fui chamada (idem, p. 51). Oráculos são constantes em quaisquer mitologias. Essa necessidade humana de conhecer suas origens e perguntar-se sobre o futuro parece ser comum a todas as culturas. Sem os oráculos, não seria possível ao homem conhecer parte de seus destinos e lutar para revertê-los.
A poetaLucila Nogueira, professora de literatura comparada e filha de imigrante, perpassa em Estocolmo a miscigenação, o interculturalismo, a mistura de mitos. Embora predominantemente esteja repleta de mitos greco-romanos, a cultura do Ocidente tem muitos elementos da mitologia nórdica ainda hoje lembrados: por exemplo, as Valquírias, imortalizadas na obra clássica de Wagner. Temos de lembrar também que a mitologia nórdica é correlata aos povos germânicos e anglo-saxões, que habitavam a região da Grã-Bretanha, Islândia, Finlândia, Suécia, Noruega, além da Dinamarca. Comunica-se, entretanto, com a mitologia dos germanos do Sul, no caso, a Alemanha.
Encontram-se no livro alguns elementos da mitologia celta: poço adorador de estrelas/ útero da grande deusa/ caldeirão de Cerridwen (NOGUEIRA, 2004, p. 16); viking: e senta junto às valquírias e seus cavalos de asas (idem, p. 16); judaico-cristã: eu um anjo clandestino, pai de Cristo e João Batista (idem, p. 12); ibérica: eu dor da rainha Urraca traída até por seu filho... (idem, p. 12); e elementos da cultura oriental: coberta por um lençol de seda e algodão egípcio... seu gosto de anis/canela e cravo/ açúcar /gengibre.. (idem, p. 19).
A autora faz referência com ênfase a divindades femininas. Primeiro, Cerridwen, deusa celta da vida e da morte. Para os galeses, Cerridwen é uma deusa tríplice: donzela, mãe e mulher idosa, cujo animal totêmico é uma grande porca branca. Do interior de seu caldeirão emanam porções com as quais a deusa celta comanda a sincronicidade de todo universo e intervém nos assuntos humanos para auxiliar seus adoradores. Seu aspecto de uma velha representa o conhecimento de todos os mistérios que só a idade e a experiência podem proporcionar. Deusa da lua, dos grãos da natureza. Associa-se à morte, à fertilidade, à inspiração, à astrologia, às ervas, aos encantamentos e ao conhecimento.
Em segundo lugar, as Valquírias, filhas de Odin: Gerhilde, Helmwige, Ortlinde, Waltraute, Rossweisse, Siegrune, Schwertleite e Brünhilde. Essa última é a líder e favorita de Odin. São representadas como guerreiras, usando capacetes e portando lanças, que cavalgam pelos céus sobre os campos de batalha, recolhendo os guerreiros que morrem heroicamente, levando-os para Valhala, o lar dos mortos, para ajudarem Odin no Ragnorok, o juízo final: esta é a passagem do mundo subterrâneo/ as almas esperando novos corpos/ quem abre os portais da morte/ abre também da vida as portas (idem, p. 16). O mito de um grupo seleto de mulheres, com força e poderes eminentemente masculinos, parece ser uma necessidade das culturas para se contrapor à dominação patriarcal. Encontram-se alguns mitos semelhantes, como as amazonas dos pré-colombianos, mulheres guerreiras que habitavam a Floresta Amazônica. Também Diana, protagonizada pela Mulher-Maravilha dos quadrinhos. Também a forte Urraca, a rainha ibérica que sofreu pela traição de seu filho, é lembrada juntamente com as anônimas mulheres das velhas cantigas de amigo (Nogueira, 2002, p. 19), é cantada pela autora, que tem origem luso-brasileira e a partir de sua experiência acadêmica desconfia da autoria masculina desse tipo de cantiga. . A influência da cultura latina é lembrada sempre por Nogueira: Eu cantava poemas em latim/ e meus gestos ainda guardavam/ qualquer coisa do período medieval (idem, p. 25)
Odin, deus da guerra, da poesia e da agricultura, é um dos primeiros mitos que aparecem no livro. Odin, que se tornou sábio ao trocar um olho seu por um gole na Fonte de Mimir, na base da raiz de Yggdrasill, a árvore do mundo. É rei dos deuses em Asgard, palácio dos deuses. Em Valaskjalf, dá ordens a uma profetisa (sibila) para decifrar o destino dos deuses. A designação sibila nasceu na mitologia grega. Sibila, sacerdotisa de Apolo, que vivia em Cumas, na Itália, tinha sido feita imortal pelos deuses ; na mitologia nórdica, a sibila era chamada de völva : título de um poema do livro, apresentado por Lucila em duas variações. As sibilas se espalharam por todo Império Romano: metade da sibila permanece enterrada na areia/ a outra metade responde às perguntas de Odin/ numa roldana sem balde corre a água da cisterna/ espelho do desamparo ouço ecoar minha voz. (NOGUEIRA, 2004, p. 15)
O que a autora pretende com essa miscelânea de mitos? Primeiramente, reconhecer como as culturas se entrecruzam: o sonho de Balder/ Odin suspenso nove noites em uma árvore/ mas o paganismo não tinha missionários nem tampouco mártires/ lembrem os visigodos escandinavos com suas fábulas mágicas (idem, p. 27). Interessante notar a referência aos missionários cristãos que, apesar de sofrerem e também fazerem sofrer os chamados povos bárbaros, ajudaram a miscigenar as culturas judaico-cristã e nórdica.
Estocolmo nos mostra que há várias intersecções entre essas duas culturas. Primeiramente, a idéia de que exista um céu (morada dos deuses) e um inferno (Valhala, para os guerreiros); Hel, para os maus; Niflheim, para os demais homens – lembra um pouco o dogma do purgatório católico). A presença de uma árvore que rege o mundo, tecendo-lhe equilíbrio. Para os cristãos, a árvore do bem e do mal selou a sorte da humanidade, condenando Adão e Eva a sofrerem as agruras do trabalho e serem dominados pela mancha do pecado original. Em uma passagem do evangelho, Jesus afirma ser a árvore e os discípulos os ramos; e que, toda a árvore que não der bons frutos, será cortada e lançada ao fogo.
A árvore, então, como equilíbrio do mundo, ligando o céu, a terra e o inferno, uma vez que, com suas raízes, está submersa, mas também visível na terra e alcançando o céu. Por exemplo, para os nórdicos, toda a essência do universo se concentra numa árvore, a Yggdrasil. Esse mito faz entender o costume vigente entre as tribos nórdicas, até o século XII, de que seus chefes faziam assembléias ao pé de uma árvore; certamente isso pode estar relacionado à imagem mitológica de que os deuses se reuniam à sombra da Yggdrasil, para dispensar justiça aos humanos. Segundo Pitta (1995, p. 32), pela sua verticalidade, idêntica à do homem, além das suas características cíclicas (floração, frutificação), a árvore permite passar do “devaneio cíclico para o devaneio progressista.” Continua a autora associando esse símbolo da vida à água fertilizante, resumo cósmico, sugerindo o devir, a progressão no tempo (idem, p. 32).
Segundo Durand (2002, p. 20), a consciência mítica não parte do jogo lingüístico, mas sim dos estados de fato – naturais ou sociais – cujo sentido é necessário integrar, assimilar ainda mais e elucidar por repetida iluminação. Pode-se afirmar que a matéria-prima do mito é existencial: é a situação do indivíduo e do seu grupo no mundo que o mito tende a reforçar, ou seja, a legitimar. O mito é, simultaneamente, modo de conhecimentos e modo de informação. Isso está presente na existência de um ‘juízo final’, ou Ragnarok, para os nórdicos. Como a Parusia bíblica, também Ragnarok será precedida de sinais. Midgard, o mundo dos homens, passará por três invernos rigorosos seguindo-se de nenhum verão. Esse tempo será marcado por guerras devastadoras e por total perda de valores e desrespeito de tabus. Como na Bíblia, a batalha final entre o bem e o mal se desenrolará numa grande planície, que, para os nórdicos é Vigrid. Loki, o irmão de Odin, que se rebelou, lembra um pouco o mito cristão de Lúcifer, ou o diabo, anjo que se rebelou contra Deus pela vaidade. Os exércitos do mal, liderados por Loki e os do bem, comandados por Odin, encontrar-se-ão para a batalha final, como os anjos do mal contra os exércitos celestes no Apocalipse de São João.
Thor, o deus do trovão, simbolizava a lei e a ordem e era o grande defensor de Asgard, morada dos deuses. Um pouco a imagem de Jesus Cristo, o filho de Deus, que também veio implantar o Reino dos Céus. Ele é representado como sendo alto e com barbas vermelhas, sempre empunhando um enorme martelo chamado Mjollnir, que espalha terror entre seus oponentes. Ao invés do martelo, porém, e com força para estimular mártires, a cruz: eu, um anjo clandestino, pai de Cristo e João Batista (idem, p. 12),verso emblemático de Lucila.
Segundo Durand (apud Turchi 2001, p. 260), em sua obra As Estruturas Antropológicas do Imaginário, propõe para o imaginário, uma divisão bipartida em dois regimes: o diurno o noturno. Os dois regimes, provenientes das três posições reflexológicas, produzem, por sua vez, três estruturas que podem ser consideradas uma verdadeira fisiologia das funções do imaginário, pois tais estruturas fixam, em outras palavras, os princípios gerais, estabelecendo os fundamentos para a identificação de cada regime. Para o regime noturno, as estruturas esquizomorfas ou heróicas; para o noturno, sintéticas ou dramáticas, e místicas ou antifrásicas. Diante da análise exposta acima, pode-se afirmar que Estocolmo é predominantemente sintético. A estrutura sintética define-se pela tendência à dialética, à concordância e à organização, tendo como princípios fundamentais a causalidade e, por símbolos, a árvore e a moeda, que sugerem crescimento, movimento, destino, eterno recomeço e dramatização perpétua, o que leva ao gênero dramático (TURCHI, 1998, p. 261). O destino não é mais uma fatalidade, mas conseqüências dos atos dos homens para assegurar o ciclo da vida, porém, são necessários rituais e sacrifícios (PITTA, 1995, p. 30).
Também presente em Estocolmo o esoterismo, constante em todas as obras da autora, em versos como esses: Garras de lince/ ossos de doninha/ dentes de cavalo/galhos de sabugueiro/ carvão de álamo/ duas pederneiras/ ossos, seixos e argila... (NOGUEIRA, 2004, p. 18). Aliás, o paganismo, religião primeira dos nórdicos, faz Lucila confessar explicitamente suas tendências místicas: esse poder de bruxa que me acusam/ era a antiga vontade de ser sacerdotisa (idem, p. 57). Afirma Durand (2002, p. 48): em nome de Aristóteles, ou da veracidade histórica da Revelação, a Igreja reprimirá cada vez mais as antigas mitologias e gnoses novas nos degraus da heresia ou da insignificante fantasia. O mito refugia-se na clandestinidade da alquimia e expande-se, aqui e ali, nos místicos que, por vezes, são grandes poetas. Lucila parece que quebra essa racionalidade ocidental, desligando-se, em alguns trechos, dos símbolos constitutivos do cristianismo e faz emergir os elfos,gnomos , fadas e duendes combatidos pela cristandade: Eu tenho esta pedra redonda/ vidência de vidro verde/ o ovo da serpente. (idem, p. 16). Norte/sul/leste/oeste/cada uma defendida por um anão mágico (p. 31).
E, depois de toda essa viagem-experiência mítico-poética, a autora, para quebrar a racionalidade castradora burguesa-ocidental, dos que se submetem como autômatos ao sistema, aconselha, à página 27: descontrolem-se/ sejam apaixonados como os deuses nórdicos, descontrolem-se.

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1937.
DURAND, G. A imaginação simbólica. SP: Cultrix, 1988.
______As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo, 3a edição, Martins Fontes, 2002.
MIELIETINSKI, E. M.. A poética do mito. RJ: Forense-Universitária, 1987.
NOGUEIRA, Lucila. Estocolmo. . Recife, LivroRápido , 2004.
PITTA, Danielle Rocha. Iniciação à Teoria do Imaginário de Gilbert Durand. Manuscrito, Recife, 1995.
TURCHI ,M. Z. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília, Ed. UnB: 2003.
_____________. Gêneros literários e antropologia do imaginário. Artigo. Letras de hoje. Porto Alegre, v. 37, no. 2, p. 259-265, julho, 2001.



Sedução estética é a força que rege poemas de Lucila

Desespero Blue, novo livro da poeta, tem noite de autógrafos hoje, no Instituto Maximiano Campos, e marca uma fase mais solta em sua obra
Pelas cores de Pedro Almodóvar e de Frida Kahlo, pela velhice safada de Bukowski, pelo suicídio de Sylvia Plath, pela solidão de Eleonor Rigby, aquela da música dos Beatles. Esses são alguns dos passeios poéticos que Lucila Nogueira faz em seu Desespero Blue, que tem noite de autógrafos hoje, no Instituto Maximiano Campos. O livro ‘amarra’ a transição para uma fase literária mais ‘solta’ (nas suas palavras), que ela começou a tramar em Refletores.
Lucila gosta de dizer que Desespero Blue é bem menos ‘histérico’ do que Refletores, porém ele continuar batendo nas mesmas teclas do antecessor – angústia amorosas, vida noturna e cultura pop. A falta de amarras da autora pode ser exemplificada por versos que revelam a busca por uma sinceridade indispensável: “Cansou da delicadeza e bateu o telefone/ porque tudo enfim já fora tanto e demasiado/ uma vida de visões como uma endecha errante/ uma rainha louca sobre a página em branco.”
O melhor de Desespero Blue, no entanto, está no exercício de colagens que Lucila faz de versos alheios, em um processo de ‘ladroagem poética’: “disse Bukowski/ ver o touro vencer o matador é o melhor/ disse Bukowski/ os recitais de poesia e os concertos de rock são o pior/ disse Bukowski/ a vida gira sobre um eixo apodrecido/ somos todos uns pássaros agonizantes/ e a maioria dos poetas são mesmos cisnes.”
Em outro bom exemplo dessa ladroagem, ela reconstrói a raiva e a sexualidade latente presentes em Sylvia Plath: “Disse Sylvia/ estes poemas não têm vida: triste diagnóstico/ estou chapada e enjoada depois do último sonífero/ e você pifou como um rádio velho/ eu podia sentar numa rocha e me pentear/ a gente podia se ver na outra vida/ mas nem no seu paraíso Zen a gente vai se cruzar.”
Desespero Blue termina com Sentimento Súbito, um poema longo e formalmente livre do resto no livro, no qual Lucila volta a ressaltar sua independência de protocolos e regras, também – mesmo que Desespero Blue soe como um cerebral exercício de sedução estética. (S.C.)

(© Jornal do Commercio-PE 25.09.2003)



- Desespero Blue, de Lucila Nogueira - "Desespero Blue" é uma obra apaixonada que invoca todas as facetas de Lucila : seja um pub underground, uma abadia espanhola poeirenta, os Alpes cruzados por elefantes de guerra, lá está a poetisa que se despe ao som de Carmina Burana, a profetisa do Apocalipse en "Quasar", a druidesa celta que canta jazz estalando castanholas. "Desdizeres" evoca do passado as palavras dos grandes mestres - é, sim, uma grande dedicatória àqueles que fazem de nós todos o que realmente somos. "Sentimento Súbito" é a coda, o gran finale : o poema dá enfim a cor ao livro, toda essa nuance azulada que ele respira - Bruno Piffardini - Edições Bagaço - Recife - 2003 - 82 p - ISBN - 85-7409-581-8
Sentimento Súbito



A Cícero Belmar
Marina Nogueira
e Eduardo Diógenes



Porque você nada sabe da insônia
não venha assim desavisado com esse universo de frases
protocolares
e toda uma higiene pasteurizada de ternura
cuidado e não se aproxime demais
existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar
em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento
súbito


a água que lavou as letras da biblioteca
é um sinal de que o amor e a palavra exigem renovação
que tanto estudo não resolve o desamparo
e que continua desabitada a casa que sou

finjo-me autobiográfica e renasço como personagem
espasmo de eletrochoque eu sirvo o meu senhor
ducha de eletricidade eu sirvo o meu senhor
e basta o seu tom de voz ser um pouco menos terno
que eu já sinto dor


como quem escolhe uma salada de rúcula
em um cardápio de veludo escuro
você está sentado numa poltrona de aço
que já começa a ser engolida
pelo mar vulcânico da minha loucura

não sei porque tudo vinha tão vagarosamente de modo
calmo
e de repente foi aquele estalo aquele sobressalto
e você não entendeu nos intervalos de linguagem
o meu jeito pelo avesso de cantar um blue


você não entendeu nada
você não percebeu que eu sou um fósforo apagado
esquecido na fuligem com memória do passado
que a vida cai pesadamente em meu cabelo azulado
e para a tela grande perder o colorido basta uma pilha se
gastar

por isso eu chego a ti numa bolha de sabão gigante
soprada no canudo de mamoeiro do quintal da infância
onde aprendi a noite o sol os cristais coloridos e as músicas
ciganas
daí que basta você me tocar e eu retorno à vida
quebra-se o encanto e o feitiço
e saio para a realidade carne que se desprende das páginas
do livro


escrevo sobre a vida como um exorcismo
não tenho remorso do que vivo
o meu poema é o sinônimo da minha pele exposta
na implosão do muro de Berlim dos sentimentos físicos

sinal vermelho
rostos vazios
caminhei coberta de sargaços na avenida
como um insignificante alfinete atraído por um imã
e perdi o sono perambulando nos telhados
à procura das palavras mais precisas
quando finalmente descobri que o que importa mesmo
sempre está implícito


e agora
eu só quero que você ouça minha voz subterrânea
ecoando muito além de toda superfície
mesmo que em mim nada esteja a salvo
quero que observe com perplexidade como eu tenho estilo
e a melancolia dos meus olhos claros
atravessa nervosamente o cosmos como um neutrino
argila submarina de abalos sísmicos na manhã de uma
rua vazia de domingo

hoje falta-me companhia para sair e beber um vinho
nada acontece e eu não sei como faça para manter-me
viva
nada acontece e eu fico inerte sem regresso nem partida
devo mudar uma vida que já não me serve
mas ando muito cansada de ser sempre eu a tomar todas
as iniciativas


você não entendeu nada
e eu estava dizendo apenas na verdade
que subitamente eu fui ficando perturbada
você me lê somente para encontrar suas palavras
mas eu venho de uma raça de saltimbancos e acrobatas
e brilham relâmpagos das tempestades nos meus gestos
delicados



o meu corpo flutua como sílabas de imagens congeladas
e nessa opressão desarticulada decido desesperadamente
ficar calada
mas não esqueço o convite para ver as estrelas num
deserto de Marrocos
nem a minha estranha fuga automática daquele mundo
cor-de-rosa entre penhascos
para voltar aqui e ficar sempre à espera do destino e do
acaso
sentinela do nada

e a vida passa como as nuvens na janela
da próxima vez eu vou ter mais cuidado
porque das outras sei que estraguei tudo só por ter medo
de encarar a realidade


eu vou telefonar
depois a gente se fala
agora eu não posso acordar
entenda que eu carrego a saudade das aves migratórias
que sobrevoam os alpinistas do círculo polar

porque você nada sabe da insônia
e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar
em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento
súbito





Desespero Blue, 2003




ECOS DA BERENGUELA
Lucila Nogueira, na Habana
XOSÉ LOIS GARCÍA
A voz carioca de Lucila Nogueira sonorizou en lingua portuguesa nas extensas naves conventuais de San Francisco de La Habana, ateigadas de público e dos poetas convidados de todo o mundo que lemos un poema na nosa lingua orixinal. A lingua portuguesa estaba representada por angolanos, brasileiros, caboverdianos e mozambicanos. Mais os oráculos líricos dunha ninfa, como os que exhibe Lucila Nogueira, de brasileirísimos sons, sorprenderon a esa multitude enorme que asistía a este recital do XII Festival Internacional de Poesía de la Habana, celebrado do 27 de maio ao 3 de xuño). O presbiterio conventual era unha especie de olimpo onde os poetas recitaban e ao seu redor as grandes voces cubanas dábanlle resplandor ao acto, como Cintio Vitier, Fina García Marruz, Roberto Fernández Retamar, Pablo Armando Fernández, Waldo Leiva e tantos outros. O cerimonial estaba presidido por Aitana Alberti e pola poeta Nancy Morejón.
A ninfa brasileira soubo conquistar o público que sempre se manifesta no aplauso forte e duradeiro, e isto sempre é bo síntoma do respectábel oidor cando se manifesta por decibelios. Estamos a falar dunha das portentosas voces da poesía brasileira, ademais de ensaísta, tradutora e profesora universitaria. Todo un complemento de vicisitudes e referencias que colocan a Lucila Nogueira no campo das contundencias poéticas. O seu timbre de voz emocional sonorizou aquel espazo e amosou que a poesía está viva, para quen a sente e para quen busca as cousas mais sinxelas e sublimadas.
Lucila Nogueira inaugurou neste evento un poemario seu, titulado: Poesia Em Havana, con dous rexistros moi diferentes. A primeira parte entronizou vinte e catro cuartetos en dúas estrofas para cada poema. A última parte os poemas están referenciados en matices diversos. Mais esa voz inicial, da que falamos, sempre evocadora e emerxente, nas súas contundencias, proclama, como nun ritual, o memorando de persoas e feitos relevantes, incidindo coa palabra metafórica, como nestes versos: "Tua epopéia finda no Quíxote/ que desejou unir armas e letras/ tua epopéia é o túmulo de Lorca/ e o cadáver de Goya sem cabeza".
Neste libro a epopea está servida de moi diversos materiais e formas de visionar eses dous mundos que aínda se contemplan indiferentes, como son Europa e América. Unha contemplación que xa ficou en desuso de tanto esquecer a ferida duns polos outros. Neste contexto, Lucila Nogueira é moi coidadosa ao articular os diversos graos dese cronicón da América pos colombina. Xa Neruda, en seu Canto General, abondou nas diversas xeografías de América e contribuíu á formación de dar corpo e estatura a esa crónica da diversidade histórica.
Nesta dirección apunta Lucila Nogueira desde o lado existencial no que busca a complicidade de temas que se resisten a desaparecer, que son elementos básicos para a reconstrución dese universo que presenta tanto material que só a poesía pode absorber e matizar en moi distintas esferas da súa diversidade. E neste plano, a poesía de Nogueira toma diversos perfís de referencia e, tamén, de contundencias como neste poema: "América, passaram-se três séculos/ da Igreja de Colombo à retomada/ Las Casas, de Vitória, José Martí// América, teu nome é Ayacucho/ Europa, onde está Nova Granada?/ Cento e setrenta anos se passaram/ talvez por isso eu fique emocionada".
Velaquí a poesía social requentada neses valores dos oprimidos, aínda sen totalizar por esclarecidos servos e marxinados polo colonialismo de antes e agora polo seu sucedáneo capitalista. Mais a poesía da escritora Lucila Nogueira non admite o discurso netamente político, ela sabe que en poesía o discurso social é de máis impacto e magnitude que o político. Mais é a ideoloxía a que sustenta os seus parámetros.

Na frente da Basílica abraçando a escultura do Louco

Recuerdos de Cuba
Na Uneac (União de Artistas e Escritores de Cuba)




Em fente à Casa de Angola


Poema lido na Abertura do XII Festival Internacional de Poesía de La Habana (2007) na Basílica Menor de San Francisco de Asis

Discurso de Essomericq


Calle del Buen Jesús en tarde de domingo
tambores y clarines
frevo y maracatú
Mama África Na Uneac
llegó encadenada como esclava
hoy su rostro es como un sello de mi patria

Calle del Buen Jesús en tarde de domingo
la multitud baila en la calle
allá voy
santa pobreza en traje de reina
allá voy
tu alegría de tambor me resucita
tu alegría de clarines por la calzada
cabezas degolladas como máscaras
son los hombres que amé
en sumiso ritual antropofágico
caníbales anteriores a Montaigne
son los náufragos de la bahía de Audierne
y mi silencio te dolió en tu tierra oh Goneville
porque era la voz de Calibán desesperado
contra la ocupación de las Américas
poderoso Goneville
soy carijó y debo regresar a mi tribu
Martinho de Nantes
soy cariri y debo regresar a mi Recife
Villegagnon de Bretaña
soy carioca y quiero volver a Río
a la Francia Antártica, a la Francia Equinoccial
a los brazos de Azenor, Levenez y Riwanon

por eso enséñame a escribir
Jean de Léry
que soy tupiniquím
enséñame la brujería del papel que habla
las palabras derivadas del tupí
enséñame tu ciencia
Lévy-Strauss
que soy tupiniquím
y te devuelvo la infancia
Marcel Proust
y te devuelvo el sueño
mon Ronsard
con el hechizo del azúcar
en los sentidos
te devuelvo
le tranquille repos de la première vie
vien dans ma chaumière
dedans il fait si bon

reste ici
y entonces tú me pediste
reste ici
y entonces tú me rogaste
un peu de bonheur
mais je suis le beau sauvage
y estuve en Nantes
oh Julio Verne
sólo para decirte
que allá en Olinda
yo conduje vraiment
una jangada nordestina

era el viento en mi rostro
la tempête
era el sol en la piel
entre navíos
je suis desamparée
mujer al mar
j’ai besoin de secours
mujer al mar

oh bravo viento fuerte
Pernambuco
corsaria veli vaga
en dakar
canoa góndola
rabelo balandra
zambra sultana
arvingel baidar

mi jangada
a babor
a estribor
barca de luces
lecho de faro
la torre color de rosa
junto al muelle
libre de remolcadores
ven a visitar

oh Goneville
a la venus prisionera
acostada sobre la espuma
de un trapecio de plumas
soy tapuia
somos todos hijos de Saturno
reúno tus partes mutiladas
Yemanjá en día de ofrenda

mujer al mar.

(Tradução ao espanhol por Marta Spagnuollo)




PARLA DI ESSOMERICQ

(DONNA A MARE)


Rua do Bom Jesus la domenica sera
tamburi clarini
frevo e maracatu

Mamma Africa
giunse legata come schiava
oggi il volto suo è come un marchio nella mia patria

Rua do Bom Jesus la domenica sera
la moltitudine danza per strada
e là io
santa miseria vestita da regina
e là io
la tua gioia di tamburo mi resuscita
la tua gioia di clarini sul marciapiede
teste sgozzate come maschere
sono gli uomini che ho amato
in sottomesso rito d’antropofago
cannibali precedenti a Montaigne
sono i naufraghi della baia di Audierne

e il tuo silenzio ti dolse a casa tua oh Goneville
perché voce del disperato Calibano
contro l’occupazione delle Americhe

poderoso Goneville
io sono carijó e devo tornare allá mia tribù
Martinho de Nantes
sono cariri e devo tornare al mio Recife
Villegagnon da Bretanha
sono carioca e voglio tornare a Rio
all’antartica Francia dell’equinozio
tra lê braccia di Azenor, Levenez e Riwanon
per questo insegnami la scrittura
Jean de Léry
che io sono tupiniquim
insegnami l’incantesimo del foglio che dice
parole francesi derivanti dal tupi
insegnami la scienza
Lévy-Strauss
che io sono tupinambá

e ti ridò l’infanzia
Marcel Proust
ti rendo il sogno
mon Ronsard
col malefício di zucchero
nei sensi
ti restituisco
le tranquille repos de la première vie
viens dans ma chaumière
dedans il fait si bom
reste ici
e allora chiedesti
reste ici
e mi pregasti
um peu de bonheur

mais je suis le beau sauvage
e a Nantes
oh Júlio Verne
solo per dirti
che là a Olinda
condussi vraiment
una jangada nordestina

era il vento sul viso mio
la tempête
era il sole sulla pelle
tra lê barche
je suis desamparée
donna a mare
j’ai besoin de secours
donna a mare

oh bravo vento forte
Pernambuco
corsara vela e vaga
a drakar
canoa gondola
stiva palandra
zambra sultana
arvingel baidar

mia jangada
a babordo
a tribordo
barca di luci
letto di fari
la torre rosa
ai piedi dei moli
sgombri di rimorchiatori
vieni a trovare

oh Goneville
la Venere prigioniera
stesa sulla spuma
d’um trapézio di piume
sono tapuia
siamo tutti figli di Saturno
e io riattacco le tue parti mozzate
Yemanjá in notte d’offerta

donna a mare.

(Tradução ao italiano de Francesco Luti)

Sunday, February 03, 2008

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE,DE LUCILA NOGUEIRA

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE, DE LUCILA NOGUEIRA

André Cervinskis *


Lançado em 1999, Imilce é de autoria da poeta luso-galego-brasileira Lucila Nogueira. Há vários anos, professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, tem, entre seus livros mais conhecidos, "Almenara", com o qual ganhou seu primeiro prêmio literário (Prêmio Manuel Bandeira, Governo de Pernambuco, 1978); "A dama de Alicante" (1990); Ainadamar (1996), Ilaiana(1997) ,"Zinganares" (Lisboa,1998), Amaya(2001),A quarta forma do Delírio (2002),Refletores (2002),Desespero Blue(2003),Estocolmo (2004), além de vários outros de ensaio e de crítica literária. Pelos títulos, já se pode perceber a dimensão onírica e o empenho em resgatar e trabalhar a mitologia, especialmente a ibérica.
A obra, na qual me deterei, retrata o "lado oculto" das histórias dos grandes heróis, pois coloca a voz da amada, Imilce, como ponto de partida da trajetória lírica. O livro, na verdade um poema em 4 vozes, de pouco mais de 90 páginas, é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. Os personagens são o próprio Aníbal, sua mãel, seu filho e Imilce. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta de seus amados.
Percebe-se, portanto, como cabe essa abordagem teórica à obra, uma vez que, segundo Durand (1989, p. 234), todo personagem histórico tem bases míticas. Seguindo a estrutura das grandes tragédias gregas (várias vozes no poema), Lucila, porém, subverte ao colocar a desconhecida suposta amada de Aníbal Barca como personagem principal do livro. Como que situando o enredo, a autora se esforça por citar toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante e mesmo os povos antigos, como romanos, mouros e gregos são freqüentes no texto. Cada lugar desses poderia esconder em si uma série de mitologias particulares, que não cabe analisar aqui. Percebe-se, no entanto, a preocupação da autora em colocar nomes que não somente fossem líricos, mas que demonstrassem o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano, na antigüidade.
Todo texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém, de forma subjacente, um mito. Imilce não o possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebe-se claramente as referências às mitologias judaico-cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó - p 77) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); além de outras específicas, como a ibérica, a celta, a judia, a dos ciganos, mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores (p.96); viu soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (p. 96). Fato inevitável, as mitologias greco-romana e cristã incorporaram elementos das demais, absorvendo a cultura do Império Romano, que trouxe em seu bojo crenças e práticas pagãs, promovendo uma “inculturação” que fez renascer, com novas roupagens, mitos antigos: Maria, Ísis, Gaia; Apolo, Elias, os Profetas .
Outra recorrência em Imilce, como em toda a obra de Nogueira, é a presença de elementos da natureza: (Imilce) são colunas de cedro minhas pernas..(14); são tão brancas as estrelas,/ quer do céu, quer do mar... (p. 24). Natureza essa que é perpassada por elementos mágicos, por vezes numa também clara referência ao esoterismo/ocultismo: (filho de Aníbal) ...O vidro de tua alma /errante/ andando em círculos perfeitos e pedras e cristais/ e solilóquios. (P. 27); minha mãe/ sem saber quem elas eram/ misturou-as/ com ervas e perfumes... era um espelho de púrpura/ em que via/ palavras de outra língua me chamando...(p. 25); Imilce enlouquecera/levando em cada mão/ um candelabro (p.26); (Aníbal): quero o feitiço de teu vinho de tâmara... (p.40). Os círculos, remetendo ao eterno movimento espiral do universo, que morre e renasce, é comum em diversas mitologias, inclusive no candomblé brasileiro. Pedras, cristais, esmeraldas e espelho: elementos ocultos, descortinando referências claras. Portanto,os personagens ligados à feitiçaria, como a rainha má de Branca de Neve e os Sete Anões.
Os metais e pedras preciosas também são usados; (mãe de Aníbal): aceso candelabro/ ensolarado/ nas fábricas de prata e de púrpura... (p. 47); (Imilce) irei ao país/ dos garamantes/ trarei as caledônias e esmeraldas... (p.72); ao sol das Pedras Negras ... (83); ): meus seios são cordilheiras de prata (p. 14); cabelos em um cristal multiplicado... (p.92). O cristal, como se sabe, é usado em rituais de adivinhação ciganos. O cristal, translúcido, revela o passado e o presente de quem o procura. É, portanto, um mito redundante em Lucila, que se repete em outras obras suas: a busca de sua origem ibérica, influenciada por esse povo que vive e respira misticismo. As pedras negras são as mais preciosas pedras, por serem raras, A pérola, por exemplo. A cordilheira de prata para os seios são imagens que remetem à Gaia, deusa-mãe de todos, na mitologia grega. A presença, aliás, da mãe de Aníbal já demonstra essa busca do Gênesis, da origem de todas as coisas; a mulher é portadora da vida e dos mistérios da criação: (mãe de Aníbal): ...e a força de negar faz-me uma deusa...(p.69); ... sou o leite/ das mães que amamentaram... (p.73); inverterei os céus/nesse momento(...)sou eu quem fere/ e quem dá a cura... (p. 73); (Imilce): o leite dos vulcões /desenha o orvalho... (p.63); sou as colunas/ em que senta o mundo; sou os passos/ dos vivos e dos mortos... (p.73).
A presença de árvores, na lírica, também é significativa, especialmente de palmeiras, sicômoros e oliveiras: ... da cor dessas palmeiras de Cartago... (p.37); Palmeiras de Cartago e de Oretania... (p.39); ... à sombra dos sicômoros/ gigantes/ à sobra/ das acácias e palmeiras... (p.52). Palmeiras são árvores gigantes, incólumes; chamam a atenção de quem passa, alcançam os deuses com sua altura. É símbolo, portanto, de grandeza e transcendência. A oliveira é uma árvore bíblica; dela se produz o azeite, importantíssimo na cultura judaica. Com ele se faz o pão ázimo, sem fermento (na passagem da viúva de Sarepta, de Elias); também o azeite foi usado para ungir reis e profetas e curar o samaritano da parábola bíblica. Os sicômoros são árvores sob as quais os judeus repousavam. Jesus encontrou Felipe debaixo de um sicômoro; também Davi descansava sob um quando Samuel o chamou para ser rei. É o encontro do indivíduo com seu destino. Nenhum simbolismo mais apropriado, portanto, do que esse, para explicitar a necessidade de transcender às dificuldades da epopéia dos personagens do livro, especialmente Aníbal Barca.
O caráter heróico da obra é evidenciado pela menção explícita de Hércules, o semideus grego que desafiou Zeus: aqui ele há de crescer/ ao sol de Hércules ... (p.43). O sol, símbolo de força e determinação, inspirando sentimentos nobres - os semideuses, frutos de amores dos deuses com humanos, eram de natureza humana, mas com poderes divinos. Geralmente, eram protagonistas de odisséias. Também a águia, símbolo de bravura: (filho de Aníbal); ... esta águia invisível / me acompanha/ aonde quer que eu vá/ dentro da Espanha (p. 21) (...) sem temer/ a vingança de um gigante?E, como em toda história mítica, há a presença de um oráculo: ... e a profecia/ se perde/ no mistério de suas asas.. (p.31); ... instinto da poesia oracular... (p.59)
Há, portanto, estampado, em todo o livro, o caráter heróico que Gilbert Durand defendeu em suas Estruturas Antropológicas do Imaginário. Maria Zaira Turchi (2003, p.33), em seu livro Literatura e antropologia do imaginário, afirma que a imaginação diurna adota uma atitude heróica, energia libidinal positiva, que aumenta o aspecto tenebroso, ogresco e maléfico da face de Cronos, endurecendo as antíteses simbólicas, através da figura ascensional e luminosa do herói com suas armas, a fim de combater a ameaça noturna . Podemos dizer, sem medo de errar, que Lucila buscou imprimir esse caráter heróico em seus personagens. Aníbal Barca, general cartaginês, parte da Espanha em guerra contra os romanos, deixando sua esposa e o filho de 9 anos (NOGUEIRA, p.33-5): (Aníbal): lutei com os romanos, doce Imilce/ acreditei no engodo da batalha; lutei contra o que vi transformaria em um espetáculo de sangue; lutei porque te amava, chão de Espanha. Para me derrotar foi necessária/ a traição servil de outro africano (idem, 75).
As mulheres, não menos heróicas, corajosamente encaram seu destino de sofrimento e desamparo: (mãe de Aníbal): na vida/ vi morrer marido e filhos (p.45); ... mulheres esquecidas nos palácios; (...) toda mulher que ama/ perde o chão (p. 46); (Imilce): agora entendo/ que me abandonaste/ cavalgando elefantes e leões ... (p.57). O próprio filho de Aníbal sente-se tocado por esse clima bélico: minha mãe/ viu soldados diferentes/ partindo para a África e a Ásia... (p. 96).
O amor e a sina dessas mulheres, como nessa passagem em que fala o filho de Aníbal, também é explorado no livro com erotismo e virulenta paixão: (mãe de Aníbal): trago discos de ouro/ nas orelhas/ refletindo o meu colo/ todo em chamas; não falarão do amor/ destas mulheres/ sozinhas a queimar/ até a loucura; Amílcar, guardo (...) os teus gritos de homem/ no meu quarto (p.51). Amor este que, por fim, deu a elas a melancolia/ dos doentes/ e o silêncio/ das almas taciturnas (p. 93).
Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio (p. 14); vem ver-me andar no fogo sobre as águas (p. 15); eu desejava o mundo como um círio ardendo (p. 17); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio (p. 19); e os altares acesos na comédia dos deuses (p.22); ... levando em cada mão um candelabro... (p.26) era dia e era noite/ e a chama acesa... (p.27); minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... (p.30);... não vive sem azeite tanto fogo... (p. 38);... que minha mãe jogou dentro do fogo... (p43).
Por que a recorrência do fogo/luz em Imilce? Talvez a autora veja nesse tema o mesmo que Gaston Bachelard (1938, p. 23), em seu livro A Psicanálise do Fogo: o fogo e o calor fornecem meios de explicação nos mais diversos campos (...). o que na vida se modifica depressa é explicado pelo fogo. O fogo é íntimo e universal. Vive no céu. Sobe das profundezas do inferno e oferece-se como amor. Volta a tornar-se matéria e oculta-se latente, contido, como o ódio e a vingança. (...) Pode contradizer-se: é portanto um dos princípios da explicação universal. O fogo, continua Bachelard, é usado como sinônimo das mais avassaladoras paixões humanas: o amor e o ódio. O fogo é símbolo de sexualidade, de vida, de movimento: (Imilce): ... e eu não pude/seguir-te ao sol... (p.60); meu coração (...) no desejo de ver-te/ encontra a luz.. (p.61) eu vivo em uma luz que apaga o dia ... (p.62). Geralmente as noites eram usadas para o amor e o fogo era presente nessas noites dos antigos. O fogo de Prometeu, que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação; Jesus mesmo revelou: eu vim trazer fogo sobre a terra, e como gostaria que ela ardesse! Há, aliás, elementos dessa mitologia em alguns trechos do livro: ... eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário. (p.15); ...cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais (p.47); leões crucificados de Cartago (p. 46)
O fogo, portanto, perpassa a nossa vida e a nossa tradição. Mas Lucila está a procura de um fogo mágico, sagrado: (Imilce): ...queimou/ as minhas mãos dentro da chuva (p.88); seu fogo se acendia e se apagava ... (p.91), como a sarça ardente de Moisés, no episódio do Êxodo hebreu. Locais sagrados e rituais são, inclusive, uma constante em seus versos: quero imitar a dança/ das estrelas/ lascívia mística/ em altar sagrado... (p. 53); ó calçadas de prata, ó santuário ... (p.39); e os altares acesos/ na tragédia (p. 23).
Poder-se-ia estender, por páginas e páginas, a presença da mitologia na obra de Lucila Nogueira. Contudo, resta a vontade de se continuar a buscar, em autores desta geração, o simbolismo mitológico que a poesia, com certeza, inspira nos poetas. Os heróis, no entanto, como em diversas narrativas clássicas, nem sempre concluem com vitória seu intento: (filho de Aníbal): pobre meu pai/ que nunca mais voltou (...) nunca vi seu rosto/de prata/ na moeda em Cartagena/ ou no busto/ de bronze do Marrocos (p.102); meu pai, triste heroísmo de ser morto (p. 103). Tal desfecho faz emergir em Imilce medo da força das palavras (p. 102). Finalmente, a poeta conclui o livro com uma constatação realista que a todos entristece: Mudaram/ só os nomes dos tiranos.


BIBLIOGRAFIA

G., BACHELARD. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo, 3.a edição, Marins Fontes, 2002.
G., BACHELARD. A psicanálise do fogo. Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1937.
G. DURAND. A imaginação simbólica. SP: Cultrix, 1988.
D. F. DENÓFRIO. Eros: a vez do mito em Carlos Fernando Guimarães. Crítica e interpretação. , n.4, p.151-4.
L. F. FERREIRA SÁ. Mito e mosaico: Orfeu e queda em Texaco. ANPOLL, n. 4, p.157, jan./jun. 1998.
S. JOACHIN. O mito na obra do poeta Gilles Hénault. Investigações, v. 9, p.49-72.
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M. Z. ZURCHI. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília, Ed. UnB: 2003.

O delírio de Imilce



Agora entendo


que me abandonaste
cavalgando


elefantes e leões
agora entendo


que me abandonaste
na terra


onde escolhi tua legião


caminho


contra a lei da gravidade
foi mais


do que eu podia suportar
meu corpo


vive a morte que é de outro
e a vida


é uma canção de transmigrar


a morte é retirada


e é retorno
água da mesma fonte


vertical
agora entendo


que me abandonaste
porque tu não morreste.


E eu estou só.


O vento


que arrastou meu pensamento
secou


todas as folhas nos degraus
e este meu desconcerto


te perturba
minha voz de silêncio


faz-te mal




não tenho


consciência do que digo
instinto


da poesia oracular
e uma descarga elétrica


esquisita
ordena


que eu caminhe sem cessar


subjugada estou


pelo delírio
vejo imagens


no estado natural
são velas


de um navio na tempestade
bandeiras


ao clarim de uma manhã


Meu pensamento


está em toda parte
a realidade inteira


é esta visão
as almas não se tocam


como a carne
e o seu desenho


transmigra no som


o mundo


é um teatro abandonado
com meu grito selvagem


ao luar
agora entendo


que me abandonaste
e eu não pude seguir-te


sob o sol




amar não basta:


é preciso dizê-lo
para reter a entrega


nos portões
meu coração


é o tom da primavera
no desejo de ver-te


encontra a luz


meu cérebro


é um girassol girando
insaciável


bêbado e gigante
na dança milenar


dos babilônios
na devoção extática


do sonho


minha imagem


dissolve-se na tarde
passou a mocidade


e estou sozinha
existência sem vida


no vazio
viver me desespera


todavia


os dentes de narval


não cicatrizam
a moleza de cera


das feridas
eu vivo em uma luz


que apaga o dia
pisando em formas


tão desconhecidas




vontade de voar


na madrugada
no túnel das girândolas


da carne
vontade de voar


nas cordilheiras
nos raios


das ramagens desse azul


percebo as relações


mais invisíveis
do sistema nervoso


da galáxia
o leite dos vulcões


desenha o orvalho
nas tochas geométricas


do sono


e o olho que surgiu


foi insensato
em espiral


no fogo do dragão
e em círculos girei


em outro corpo
eu era de mim mesma


uma visão


recuso-me a aceitar


toda esta mágoa
digo ao destino


que se equivocou
inda escuto seus passos


pela casa
o tempo até cruzar


o corredor




inda escuto seus passos


pela casa
perfeito como um deus


e hoje é assim
tenho medo


da força das palavras
medo da profecia


que há em mim


O que dizer


quando o amor se acaba?
O que é a loucura


senão um motim?
era o meu companheiro


bem-amado
quanta coisa ele fez


só para mim


partiu sem mais voltar


Aníbal Barca
(quanta coisa ele fez


só para mim)
recuso-me a aceitar


toda esta mágoa
recordo o tempo


em que eu era feliz


e o que é a loucura


senão a lembrança
de algo que se perdeu


sem se pedir
e o que é o amor


senão uma loucura
que tenta


a eternidade construir?




Agora entendo


que me abandonaste
por isso falo só


neste jardim
agora entendo


que me abandonaste
recordo o tempo


em que eu era feliz


- e o que dizer


quando um amor se acaba?
e o que é a loucura


senão um motim?

MITOCRÍTICA DO LIVRO IMILCE, DE LUCILA NOGUEIRA

André Cervinskis *


Lançado em 1999, Imilce é de autoria da poeta luso-galego-brasileira Lucila Nogueira. Há vários anos, professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, tem, entre seus livros mais conhecidos, "Almenara", com o qual ganhou seu primeiro prêmio literário (Prêmio Manuel Bandeira, Governo de Pernambuco, 1978); "A dama de Alicante" (1990); Ainadamar (1996), Ilaiana(1997) ,"Zinganares" (Lisboa,1998), Amaya(2001),A quarta forma do Delírio (2002),Refletores (2002),Desespero Blue(2003),Estocolmo (2004), além de vários outros de ensaio e de crítica literária. Pelos títulos, já se pode perceber a dimensão onírica e o empenho em resgatar e trabalhar a mitologia, especialmente a ibérica.
A obra, na qual me deterei, retrata o "lado oculto" das histórias dos grandes heróis, pois coloca a voz da amada, Imilce, como ponto de partida da trajetória lírica. O livro, na verdade um poema em 4 vozes, de pouco mais de 90 páginas, é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. Os personagens são o próprio Aníbal, sua mãel, seu filho e Imilce. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta de seus amados.
Percebe-se, portanto, como cabe essa abordagem teórica à obra, uma vez que, segundo Durand (1989, p. 234), todo personagem histórico tem bases míticas. Seguindo a estrutura das grandes tragédias gregas (várias vozes no poema), Lucila, porém, subverte ao colocar a desconhecida suposta amada de Aníbal Barca como personagem principal do livro. Como que situando o enredo, a autora se esforça por citar toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante e mesmo os povos antigos, como romanos, mouros e gregos são freqüentes no texto. Cada lugar desses poderia esconder em si uma série de mitologias particulares, que não cabe analisar aqui. Percebe-se, no entanto, a preocupação da autora em colocar nomes que não somente fossem líricos, mas que demonstrassem o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano, na antigüidade.
Todo texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém, de forma subjacente, um mito. Imilce não o possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebe-se claramente as referências às mitologias judaico-cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó - p 77) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); além de outras específicas, como a ibérica, a celta, a judia, a dos ciganos, mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores (p.96); viu soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (p. 96). Fato inevitável, as mitologias greco-romana e cristã incorporaram elementos das demais, absorvendo a cultura do Império Romano, que trouxe em seu bojo crenças e práticas pagãs, promovendo uma “inculturação” que fez renascer, com novas roupagens, mitos antigos: Maria, Ísis, Gaia; Apolo, Elias, os Profetas .
Outra recorrência em Imilce, como em toda a obra de Nogueira, é a presença de elementos da natureza: (Imilce) são colunas de cedro minhas pernas..(14); são tão brancas as estrelas,/ quer do céu, quer do mar... (p. 24). Natureza essa que é perpassada por elementos mágicos, por vezes numa também clara referência ao esoterismo/ocultismo: (filho de Aníbal) ...O vidro de tua alma /errante/ andando em círculos perfeitos e pedras e cristais/ e solilóquios. (P. 27); minha mãe/ sem saber quem elas eram/ misturou-as/ com ervas e perfumes... era um espelho de púrpura/ em que via/ palavras de outra língua me chamando...(p. 25); Imilce enlouquecera/levando em cada mão/ um candelabro (p.26); (Aníbal): quero o feitiço de teu vinho de tâmara... (p.40). Os círculos, remetendo ao eterno movimento espiral do universo, que morre e renasce, é comum em diversas mitologias, inclusive no candomblé brasileiro. Pedras, cristais, esmeraldas e espelho: elementos ocultos, descortinando referências claras. Portanto,os personagens ligados à feitiçaria, como a rainha má de Branca de Neve e os Sete Anões.
Os metais e pedras preciosas também são usados; (mãe de Aníbal): aceso candelabro/ ensolarado/ nas fábricas de prata e de púrpura... (p. 47); (Imilce) irei ao país/ dos garamantes/ trarei as caledônias e esmeraldas... (p.72); ao sol das Pedras Negras ... (83); ): meus seios são cordilheiras de prata (p. 14); cabelos em um cristal multiplicado... (p.92). O cristal, como se sabe, é usado em rituais de adivinhação ciganos. O cristal, translúcido, revela o passado e o presente de quem o procura. É, portanto, um mito redundante em Lucila, que se repete em outras obras suas: a busca de sua origem ibérica, influenciada por esse povo que vive e respira misticismo. As pedras negras são as mais preciosas pedras, por serem raras, A pérola, por exemplo. A cordilheira de prata para os seios são imagens que remetem à Gaia, deusa-mãe de todos, na mitologia grega. A presença, aliás, da mãe de Aníbal já demonstra essa busca do Gênesis, da origem de todas as coisas; a mulher é portadora da vida e dos mistérios da criação: (mãe de Aníbal): ...e a força de negar faz-me uma deusa...(p.69); ... sou o leite/ das mães que amamentaram... (p.73); inverterei os céus/nesse momento(...)sou eu quem fere/ e quem dá a cura... (p. 73); (Imilce): o leite dos vulcões /desenha o orvalho... (p.63); sou as colunas/ em que senta o mundo; sou os passos/ dos vivos e dos mortos... (p.73).
A presença de árvores, na lírica, também é significativa, especialmente de palmeiras, sicômoros e oliveiras: ... da cor dessas palmeiras de Cartago... (p.37); Palmeiras de Cartago e de Oretania... (p.39); ... à sombra dos sicômoros/ gigantes/ à sobra/ das acácias e palmeiras... (p.52). Palmeiras são árvores gigantes, incólumes; chamam a atenção de quem passa, alcançam os deuses com sua altura. É símbolo, portanto, de grandeza e transcendência. A oliveira é uma árvore bíblica; dela se produz o azeite, importantíssimo na cultura judaica. Com ele se faz o pão ázimo, sem fermento (na passagem da viúva de Sarepta, de Elias); também o azeite foi usado para ungir reis e profetas e curar o samaritano da parábola bíblica. Os sicômoros são árvores sob as quais os judeus repousavam. Jesus encontrou Felipe debaixo de um sicômoro; também Davi descansava sob um quando Samuel o chamou para ser rei. É o encontro do indivíduo com seu destino. Nenhum simbolismo mais apropriado, portanto, do que esse, para explicitar a necessidade de transcender às dificuldades da epopéia dos personagens do livro, especialmente Aníbal Barca.
O caráter heróico da obra é evidenciado pela menção explícita de Hércules, o semideus grego que desafiou Zeus: aqui ele há de crescer/ ao sol de Hércules ... (p.43). O sol, símbolo de força e determinação, inspirando sentimentos nobres - os semideuses, frutos de amores dos deuses com humanos, eram de natureza humana, mas com poderes divinos. Geralmente, eram protagonistas de odisséias. Também a águia, símbolo de bravura: (filho de Aníbal); ... esta águia invisível / me acompanha/ aonde quer que eu vá/ dentro da Espanha (p. 21) (...) sem temer/ a vingança de um gigante?E, como em toda história mítica, há a presença de um oráculo: ... e a profecia/ se perde/ no mistério de suas asas.. (p.31); ... instinto da poesia oracular... (p.59)
Há, portanto, estampado, em todo o livro, o caráter heróico que Gilbert Durand defendeu em suas Estruturas Antropológicas do Imaginário. Maria Zaira Turchi (2003, p.33), em seu livro Literatura e antropologia do imaginário, afirma que a imaginação diurna adota uma atitude heróica, energia libidinal positiva, que aumenta o aspecto tenebroso, ogresco e maléfico da face de Cronos, endurecendo as antíteses simbólicas, através da figura ascensional e luminosa do herói com suas armas, a fim de combater a ameaça noturna . Podemos dizer, sem medo de errar, que Lucila buscou imprimir esse caráter heróico em seus personagens. Aníbal Barca, general cartaginês, parte da Espanha em guerra contra os romanos, deixando sua esposa e o filho de 9 anos (NOGUEIRA, p.33-5): (Aníbal): lutei com os romanos, doce Imilce/ acreditei no engodo da batalha; lutei contra o que vi transformaria em um espetáculo de sangue; lutei porque te amava, chão de Espanha. Para me derrotar foi necessária/ a traição servil de outro africano (idem, 75).
As mulheres, não menos heróicas, corajosamente encaram seu destino de sofrimento e desamparo: (mãe de Aníbal): na vida/ vi morrer marido e filhos (p.45); ... mulheres esquecidas nos palácios; (...) toda mulher que ama/ perde o chão (p. 46); (Imilce): agora entendo/ que me abandonaste/ cavalgando elefantes e leões ... (p.57). O próprio filho de Aníbal sente-se tocado por esse clima bélico: minha mãe/ viu soldados diferentes/ partindo para a África e a Ásia... (p. 96).
O amor e a sina dessas mulheres, como nessa passagem em que fala o filho de Aníbal, também é explorado no livro com erotismo e virulenta paixão: (mãe de Aníbal): trago discos de ouro/ nas orelhas/ refletindo o meu colo/ todo em chamas; não falarão do amor/ destas mulheres/ sozinhas a queimar/ até a loucura; Amílcar, guardo (...) os teus gritos de homem/ no meu quarto (p.51). Amor este que, por fim, deu a elas a melancolia/ dos doentes/ e o silêncio/ das almas taciturnas (p. 93).
Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio (p. 14); vem ver-me andar no fogo sobre as águas (p. 15); eu desejava o mundo como um círio ardendo (p. 17); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio (p. 19); e os altares acesos na comédia dos deuses (p.22); ... levando em cada mão um candelabro... (p.26) era dia e era noite/ e a chama acesa... (p.27); minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... (p.30);... não vive sem azeite tanto fogo... (p. 38);... que minha mãe jogou dentro do fogo... (p43).
Por que a recorrência do fogo/luz em Imilce? Talvez a autora veja nesse tema o mesmo que Gaston Bachelard (1938, p. 23), em seu livro A Psicanálise do Fogo: o fogo e o calor fornecem meios de explicação nos mais diversos campos (...). o que na vida se modifica depressa é explicado pelo fogo. O fogo é íntimo e universal. Vive no céu. Sobe das profundezas do inferno e oferece-se como amor. Volta a tornar-se matéria e oculta-se latente, contido, como o ódio e a vingança. (...) Pode contradizer-se: é portanto um dos princípios da explicação universal. O fogo, continua Bachelard, é usado como sinônimo das mais avassaladoras paixões humanas: o amor e o ódio. O fogo é símbolo de sexualidade, de vida, de movimento: (Imilce): ... e eu não pude/seguir-te ao sol... (p.60); meu coração (...) no desejo de ver-te/ encontra a luz.. (p.61) eu vivo em uma luz que apaga o dia ... (p.62). Geralmente as noites eram usadas para o amor e o fogo era presente nessas noites dos antigos. O fogo de Prometeu, que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação; Jesus mesmo revelou: eu vim trazer fogo sobre a terra, e como gostaria que ela ardesse! Há, aliás, elementos dessa mitologia em alguns trechos do livro: ... eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário. (p.15); ...cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais (p.47); leões crucificados de Cartago (p. 46)
O fogo, portanto, perpassa a nossa vida e a nossa tradição. Mas Lucila está a procura de um fogo mágico, sagrado: (Imilce): ...queimou/ as minhas mãos dentro da chuva (p.88); seu fogo se acendia e se apagava ... (p.91), como a sarça ardente de Moisés, no episódio do Êxodo hebreu. Locais sagrados e rituais são, inclusive, uma constante em seus versos: quero imitar a dança/ das estrelas/ lascívia mística/ em altar sagrado... (p. 53); ó calçadas de prata, ó santuário ... (p.39); e os altares acesos/ na tragédia (p. 23).
Poder-se-ia estender, por páginas e páginas, a presença da mitologia na obra de Lucila Nogueira. Contudo, resta a vontade de se continuar a buscar, em autores desta geração, o simbolismo mitológico que a poesia, com certeza, inspira nos poetas. Os heróis, no entanto, como em diversas narrativas clássicas, nem sempre concluem com vitória seu intento: (filho de Aníbal): pobre meu pai/ que nunca mais voltou (...) nunca vi seu rosto/de prata/ na moeda em Cartagena/ ou no busto/ de bronze do Marrocos (p.102); meu pai, triste heroísmo de ser morto (p. 103). Tal desfecho faz emergir em Imilce medo da força das palavras (p. 102). Finalmente, a poeta conclui o livro com uma constatação realista que a todos entristece: Mudaram/ só os nomes dos tiranos.


BIBLIOGRAFIA

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G. DURAND. A imaginação simbólica. SP: Cultrix, 1988.
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