Sunday, September 23, 2007

Edifício Seabra (Seabra Building) 12.10.5

esta a revelação sobre mim mesma contida no mistério magnétivo do edifício onde estive com meu pai quando criança : uma didática européia quanto às origens e a lição "serena spectantibus hora"



LUCILA NOGUEIRA ENSINA COMO DOMAR A VIDA


CLAUDIO AGUIAR


Enigma ou mistério são palavras equivalente que levam em sua carga semântica tudo que se relacione ao desconhecido, ou, àquilo que, uma vez revelado por interferência divina, não pode ser do conhecimento do comum dos mortais.


No reino da poesia, porém, os mistérios ou enigmas são mais amplos, genéricos e sobrevivem ao sabor e ao saber da capacidade criativa do vate. É o que acontece agora com a poetisa Lucila Nogueira, neste livro, "Ilaiana", que, salvo melhor entendimento, guarda uma equilibrada proporção entre o acontecimento extraordinário - a descoberta da cidade de Elche e a construção formal de sua fatura poética em quartetos metrificados ancorados em dísticos lapidares.


Elche, cidade milenária, povoada por histórias misteriosas, rica de fatos inexplicáveis que se fundem numa espécie de encruzilhada geográfica do Mediterrâneo e a terra que esconde a passagem dos fenícios, até nossos dias ainda é um rincão onde se amalgamaram feitos reveladores das mais diversas culturais e que terminaram gerando um tempo de convivência de pessoas com traços múltiplos.

Destaque-se, apenas como exemplo, que o mistério da Dama de Elche guarda a confluência positiva de duas culturas originalmente díspares: a moura (oriental) e a ibérica (ocidental).


Por amar tanto as coisas misteriosas - expressão que uso aqui com a intenção de dizer a palavra vida - Lucila trouxe à sua poesia uma carga fortíssima de indagação, de sondagem, chegando, como foi o caso de Quasar, a alturas insondáveis.

Há, nas pessoas, um certo magnetismo pessoal que se expande como uma luminosidade, em maior ou menor intensidade não só no jeito de fazer as coisas, mas até no modo de estar no mundo. No caso de Lucila, essa intensidade parece estar sempre expandindo-se, atraindo, somando, mas também dividindo, porque o amor, em grande parte, é dar-se. Por isso, é difícil não se notar a sua presença num certo ambiente. Essa singularidade também aparece nos temas de sua poesia.


Ao ler Ilaiana, Enigmas de Elche, veio-me de imediato essa indagação: por que uma poetisa brasileira, de nossos dias, preocupar-se tanto com dimensões específicas de um mistério milenar que cerca um distante rincão da chamada "rota das palmeiras", do entorno geográfico do mundo de Alicante, em Espanha?


O livro de Lucila Nogueira, uma poetisa brasileiríssima pela vivência pernambucana de boa parte de sua vida, mas também por uma espécie de domínio formal do trato com a poesia, não se cinge apenas ao seu saber de mestra de nossas universidades. Confirma, até agora, sua preocupação com a edificação de uma obra literária que se mantém próxima, senão dentro mesmo, daquelas mais profundas raízes que explicam nossas origens culturais.


E este livro de Lucila Nogueira é, segundo, entendo um bom momento para ressaltar-se o necessário enlace entre culturas e povos historicamente irmanados. Como todos sabem, as raízes ibéricas, num sentido mais amplo de abrangências territorial e não cultural, não são exclusivas dos demais povos latino-americano, os nossos vizinhos que receberam diretamente dos espanhóis as experiências do processo de colonização a partir do final do século XV. Somos também herdeiros e usuários, às vezes inconscientemente, das mesmas origens históricas.


A busca que está fazendo a poetisa Lucila Nogueira, porém, tem uma forte razão de ser. Afirmo que ela foi até Elche levada pela história de nossas próprias origens. Ela nos descobre através de dimensões humanas e geográficas de latitudes tão distantes nos espaços que jamais imaginávamos serem nossas. Dimensões tão próximas na preservação de hábitos e enigmas nossos que só através do gesto de Lucila Nogueira, vemos que seus poemas sobre Elche também poderiam ser cantados e entendidos com os enigmas marianos que conhecemos em cada vila ou cidade brasileira.


Essa natural atitude de indagar, de procurar recordar e evocar, pesquisar e provocar debates - como agora o fazemos a partir das múltiplas sugestões que provoca a poesia de Lucila Nogueira, - podemos notar uma constante na mentalidade do brasileiro como algo herdado. Porque povo nenhum pode arvorar-se de não estar em dívida com outros. Entre nós, portanto, originou-se um modo de ser com traços marcantes de uma visão luso-hispânica. Lusa sim, mas também preponderante do lado espanhol.


"Essa vinculação histórica, na verdade, cresceu e consolidou-se nos mais diferentes aspectos das atividades do direito, das letras e das artes, do folclore etc. E daí, afirmar-se que se trata o Brasil de nação - insistiu Freyre - "duplamente hispânica: a única a se caracterizar por uma singularidade que nela reforça, em vez de prejudicar, sua condição de herdeira direta tanto de valores espanhóis como de valores portugueses. Não é assim - continua Freyre - um intruso na comunidade hispânica - que inclui Portugal tanto quanto a Espanha - porém a expressão mais completa do que nessa comunidade, é uma cultura ao mesmo tempo una e plural, quando considerada nos seus característicos sociológicos".


Essa posição, a nosso ver, clarifica bem não só o seu comportamento de escritor - a seu modo duplamente hispânico - mas o de um cientista situado nos moldes de tantos outros hispânicos que se recusaram ao método das demais comunidades da Europa. Mas não só ele. Outros, cientistas ou filósofos hispanos, têm marcado suas trajetórias por um modo de ser não sistemático no enfoque das questões abordadas. O mesmo se diga em relação aos principais escritores hispânicos e lusos, onde a obra repousa menos num rigor formal de gênero do que numa mescla inaudita de situações, como foi o caso de Miguel de Cervantes que tanto desorientou aos seus mais sensíveis intérpretes como Goethe, Thomas Mann ou Freud, homens afeitos à disciplina. Nem por isso, ao longo dos séculos, Dom Quixote deixou de ser admirado pelas mais diferentes gerações de leitores.


Agora, entre nós, com o exemplo de Lucila Nogueira, que reacende os laços dessa hispanidade através do fulgor de seus versos, ora prenhes de referências a situações locais marcadas pela relembrança, ora tocados pela carga simbólica do enigma - a arte de traduzir com palavras o indizível, vemos que as possibilidades e os caminhos de um enlace entre povos e culturas sempre se renovam.


E já que o tema é a poesia brasileira que revisita aquele mundo, para nós, aparentemente perdido, quero dizer quase numa espécie de confidência, que conheço bem Elche e seus entornos, a mesma região que Lucila Nogueira escolheu para centralizar como cenário ou pedra de toque el mistério que até hoje envolve a todos que chegam à Basílica de Santa María, onde vive a Dama de Elche.

Impressionou-me que o mito mariano encontrasse a mesma dimensão que aquele povo dedica à natureza, cultuando fortemente uma planta como a palmeira. E esse traço oriental, não sei bem por que razão, fez-me lembrar com saudade de nossas praias, de nossos coqueiros e, num tom de lamento, recordasse o nosso pouco cuidado no trato com as coisas da terra.


Também fui tomado de profunda emoção pela história misteriosa que cobre o passado da chamada Santa Moura - uma Nossa Senhora que abarca de uma só vez as virtudes do mundo árabe, então dominante, e a fé cristã ocidental.


Devo dizer que não só por isso cheguei à "ruta de las palmeiras". Desejava percorrer os caminhos que levam ao berço de um poeta que nascera ali por, em Orihuela, antigo reino de Teodomiro.
Por muitas razões, Ilaiana Enigmas de Elche, de Lucila Nogueira, é um livro de enlace, de irmandade, de relembranças, próximas ou remotas. Um livro também de advertência, naquele sentido de que, no meu caso pessoal, faz lembrar Miguel Hernández, o poeta de Orihuela, que próximo de Elche, cuidava de cabras e escrevia versos como estes:


"Tus ojos se me van de mi ojos, y vuelven después de recorrer un páramo de ausentes".


Aos quais Lucila Nogueira poderia responder:


"Meu verso é tua capa magnética que herdei das profetisas anciãs

meu verso é teu incenso enluarado botafumeiro entre constelações".

Imagino este diálogo entre Miguel Hernández e Lucila para dizer que eles, tão distantes geograficamente, na verdade, sempre estiveram próximos nos sentimentos, pois poderiam, ambos, entoam, como nós agora o fazemos, ainda que silenciosamente, o anúncio da chegada do poeta que diz:


"Llego con tres heridas: la del amor, la de la muerte, la de la vida".


Versos que Lucila poderia responder, assim:


"Escrevi recoberta de serpentes, montada em loepardos e leões"


Poetisa Lucila Nogueira, aceito a sua lição: é assim que devemos domar a vida.

Jornal do Commercio, Recife - 08/fev/1998

eu aos 36 com efeito giz


eu aos 36 com efeito giz
Upload feito originalmente por lucnog2
dos 32 aos 37 anos estive magra
com o rosto anguloso do meu pai
é curioso que sua morte em 1975
coincide com o início da publicação dos meus poemas nos jornais de recife : no caso o nascimento artístico
em meio à epifania do mistério em que fui envolvida desde meu início
e atendendo à sugestão quando a questões de sonoridade feita por um poeta meu amigo eu passei a assinar como poeta o nome de lucila nogueira

eu aos 36 com efeito giz


eu aos 36 com efeito giz
Upload feito originalmente por lucnog2
esta foto foi publicada no meu terceiro livro "quasar"(1937) e tem sido repetida nos "poesia em medellin"(2006) ,"poesia em caracas" e "poesia em havana"(2007)

A MORDERNA LÍRICA CAPA DEFINITIVA contracapa_mosaico

efeito giz de quem busca uma identidade
revelada no mosaico vitrificado

a minha bisavó ana rita de albuquerque mello
era filha de senhor de engenho em pernambuco
fugiu adolescente no dia de seu matrimônio
para casar com o advogado português josé seabra
tabelião da cidade de paudalho
onde fundou banda municipal há pouco centenária
a minha avó lucilla esperou muitos anos
que meu avô alberto nogueira tivesse condições econômicas
para se casar e ter os sete filhos entre eles minha mãe lygia
professora e estudante do primeiro curso de pós graduação em educação física no rio de janeiro
onde conheceu o meu pai português da régua alberto mattos rodrigues
que imigrara para a casa da tia arminda garcia casada e sem filhos
a qual nos anos 20 do século XX
viera à então capital do brasil onde estabelecera uma drogaria
e o meu nome ficou sendo lucila nogueira rodrigues
com os olhos verdes do meu avô ourives josé rodrigues
e o riso claro da minha avó lucilla de mello seabra
criada entre o regionalismo nordestino
e o cosmopolitismo carioca
a que chamavam "russinha" na maternidade da piedade
que morou entre botafogo/rua do lima/olinda
e em um colégio recifense de freiras italianas
aprendeu a ter disciplina e fascínio pelas artes
a que por intermédio da sua vidência onírica
descobriu as paisagens de ato-douro/minho/galiza
a meio-irmã heleni jornalista e advogada
a doença de seu pai seguida de morte
reencontrando o nome galego susabila
em sua certidão de óbito
a que foi criada alheia dentro de uma vidraça
ignorando tanta coisa sobre sua origem
mas que a poesia sustentou na tempestade
porque dizem que o poema é quase sempre
a sobrevivência desesperada de uma falta



A POESIA MÍTICA DE ZINGANARES


ADRIANE HOFFMANN



A lírica moderna é a representação de uma estrutura estética e social que pode ser observada multiplamente: pela presença do indeterminado exposto por palavras determinantes; pela expressão do complicado por meio de frases simples; pela utilização do inconexo por meio da criação de conexões, e do sem fundamento pela apresentação de argumentações; pela ausência do tempo por meio de designações temporais; pelo uso do abstrato por intermédio das forças mágicas das palavras; e pela exploração do arbitrário pelo estabelecimento do improvável no conteúdo.Essas renovações são dissonâncias da linguagem poética moderna.

Reconhecendo que o lirismo moderno corresponde a um recorte do mundo com um arranjo especial da linguagem e que as produções líricas tematizam fatos e idéias atemporalmente, é que principio a leitura da obra Zinganares, da poeta Lucila Nogueira. A autora apresenta um referencial onírico sem datas nem lugares certos, evocando um sonho milenar e harmonioso do qual participam deuses e homens.

Minha escolha do oitavo livro de Lucila Nogueira, foi realizada tendo em vista o reconhecimento de sua importância no cenário das letras brasileiras, tanto pela sua temática voltada para as raízes das nossas origens culturais, quanto pela qualidade formal de todos os poemas A relevância da autora se ratifica também pelas duas vezes que mereceu o Prêmio Literário Manuel Bandeira, nos anos de 1979 e 1987. Membro da Academia Pernambucana de Letras a autora é também participante de órgãos representativos da Literatura Brasileira e Portuguesa no país e no exterior.

Poeta, crítica, tradutora e professora, e seus poemas já foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Sua primeira obra poética publicada foi Almenara, de 1979. A autora nessa obra canta o amor, compromete-se com o social e chega atingir o plano metafísico, empenhada em cobrir as muitas dimensões que compõem o eu poético como indivíduo a um tempo solitário e solidário. Seu primeiro livro oferece ao leitor sinais de uma poesia que surge em condições de equilíbrio e maturidade, apesar de ser uma poesia estreante.Peito aberto, editado em 1983, é a segunda obra da poeta. Esse livro é um canto-denúncia que expõe os desencontros da vida e sugere como imagem global uma outra existência para os homens. Já o livro Quasar, de 1987, é um testemunho da relação da poeta com o cosmo e com a simbologia do astro, refletindo a angústia do homem, o seu desespero físico e metafísico diante das poderosas forças da natureza que ele conseguiu dominar para o seu próprio aniquilamento.Em 1990, A dama de Alicante é publicada, instituindo-se num conjunto poético que atinge tensão e força, e mantém a simplicidade dos cotidianos em suas poesias. Dimensionando uma fusão lírica de vida e sonho, de memória e mito, de realidade e símbolo, de sombra e luz, a poeta expõe sentimentos e emoções, universalizando-os. Já em O Livro do Desencanto, apresentado ao público no ano de 1991, há uma mescla de intimismo dilacerado e ressurgências misteriosas de uma linguagem aparentada com o sonho. Em Lucila Nogueira, a poesia nunca se restringe ao circunstancial, sempre o ultrapassa por meio de metáforas cheias de luminosidade, bem como na utilização de outros recursos de linguagem como anáforas, alofonias, apóstrofes, sinédoques, hipálages e sintagmas.

Em 1996, a obra Ainadamar, por versar sobre os mártires e as lendas de Granada e da América, apresenta uma trajetória épica perpassada por uma carga lírico-dramática. Os aspectos formais desse livro transitam por quarenta poemas com quadras decassílabas heróicas, por rimas não esquemáticas, pela intensa musicalidade dos versos e pelos jogos imagísticos presentes nas metáforas hiperbólicas, nas anáforas e nos paralelismos.Ilaiana – Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do nome dessa obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final. Esses dois versos que inauguram e concluem o poema completam uma estrutura cíclica regressando à matriz temática. Em 1998, o surgimento de Zinganares (Lisboa, Árion)acrescenta à produção poética de Lucila Nogueira poemas que expõem uma temática mitológica. Imilce, publicado em 2000, resgata a história de uma família marcada pela grandeza e pela traição de um herói. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura dupla, pois há a possibilidade de ler-se os versos por inteiro, como normalmente se procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.

A lírica enigmática de Lucila Nogueira, contudo, não se desvenda na sua totalidade. Daí permanecer sempre o efeito novo e encantatório de seus versos a cada leitura. A possibilidade de o sonho fazer parte do ser humano e de o resgate do passado possibilitar a compreensão dos enigmas existentes são estímulos para se modificar a existência do dia-a-dia, de navegar na lírica de Lucila Nogueira para experimentar-se como ser sagrado em aventuras sobrenaturais.

Na obra Zinganares de Lucila Nogueira o eu lírico é feminino e se autodefine humano com poderes sobrenaturais. O aspecto terreno aparece quando se lembra do passado ("Lembro de mim quando eu era menina" (XI) ) ou quando se imagina reencarnada em um corpo humano ("um dia eu voltarei eu sei um dia/estátua prisioneira de um vestido" (XIII)). O eu lírico também se descreve com poderes mentais capazes de decifrar pensamentos ("O que vejo nas almas eu escrevo/esse poder mental nasci com ele" (II)) e com poderes de incorporar deusas do passado ("Sou capaz de viver em vários planos/metáfora das deusas que vivi/eu sou o sincretismo de um mistério/que morre e ressuscita sem partir" (VIII)).

A presença do eu lírico feminino está explicitada em dezenove poemas na obra. Essa percepção é visível nas terminações verbais em primeira pessoa, no uso dos pronomes e adjetivos no feminino, nas comparações às deusas e elementos míticos do passado também no mesmo gênero, e na alusão à realidade em forma de personagem feminino. A analogia às divindades, no poema III, na terceira estrofe, expõe um eu lírico simbolizador da força produtiva feminina da natureza, em forma de deusa e de estátua, como demonstram os versos "sou face de Baal em véu de Ísis/sou estátua de cura da cidade/deusa dos cananeus e dos sidônios/o incenso queima nos meus santuários".

A evidência do sujeito lírico, por sua vez, no poema IV, está registrada na forma verbal "nascida", nos versos 1 e 17 ("Eu sou a não nascida que não morre"), forma essa que apresenta a possibilidade de o sujeito poético feminino transitar entre o sagrado e o terreno. Já no poema VI, a forma de deslocar-se para o passado e retornar ao presente, contendo em si esses dois universos, é visível nos versos 5 ("contraceno com sombras de mim mesma"), 6 ("imagem virtual de outras visões"), 9 ("sou não sou eu assim como num sonho"), e 10 ("e o filme de mim mesma continuo").

A constância da afirmativa de que o eu lírico feminino retém a tradição, o poder divinatório e a sabedoria dos antepassados, aliados à vida humana, finita e limitada, está presente também no poema VIII. Os versos da primeira estrofe ilustram bem tal poder: "Sou capaz de viver em vários planos/metáfora das deusas que vivi/eu sou o sincretismo de um mistério/que morre e ressuscita sem partir", que é reforçado pela repetição dos dois primeiros versos ao final do poema.

Mais uma ocorrência da presença do eu lírico feminino é o poema XI, que além de expor elementos do mundo real, humano, refere-se à outras vidas, ao passado. Os versos que apresentam informações da vida terrena são o 1 ("Lembro de mim quando eu era menina"), o 2 ("e completava as frases dos adultos") e o 7 ("o corpo desdobrado repetia"); já os versos que contêm aspectos ligados ao mito são o 3 ("o que ia suceder eu predizia"), o 8 ("duas imagens numa só figura") e o 15 ("vidente telepata ou médium mística").
O sujeito poético feminino, no poema XIII, afirma que, se reencarnar, voltará em forma de mulher, como expressam os versos 13, 14, 15 e 16 ("caminho nos porões dentro do abismo/entre a realidade e o fictício/um dia eu voltarei eu sei um dia/estátua prisioneira de um vestido"). Para corroborar a presença do eu lírico feminino, há a utilização de adjetivos no poema XV, nos versos 5 ("atravessei o pântano e estou viva"), 6 ("saí fortalecida da Lagoa") e 7 ("Talos vitoriosa sobre a Dédala"). E, no poema XVII, novamente há referência a aspectos femininos, como "poesia" ("a poesia em perpétua possessão"), "deusa" ("deusa que me invadiste a consciência") e "musa" ("musa de luz, enigma do chão").

A sintetização de que o eu lírico é feminino, tanto na vida trivial como nas histórias milenares experimentadas e repassadas por ele, está no poema XVIII:

(1) Sou a ordem do mundo e do destino
(2) metade humana sou metade deusa
(3) eu inventei a rota dos moinhos
(4) e o parto me alterou a consciência
(5) quero tecer um sonho de mim mesma
(6) me autohipnotizar sem mais regresso
(7) metade do meu olho é incandescente
(8) e a outra metade vive inconsciente
(9) o segredo que trago é a vida eterna
(10) entre o mundo dos mortos e dos vivos
(11) sou a visão final dos peregrinos
(12) telestério onde o culto se revela
(13) sou do Egito da Ásia e da Suméria
(14) sou a mãe milenar da ilha de Creta
(15) em Eleusis reinei por dois mil anos
(16) antes de me chamar santa Demetra
(17) – compreender as deusas do passado
(18) é celebrar a força das mulheres

A consolidação de que retém o poder de ordenar o mundo e o destino é justificado pelo sujeito poético ser "metade humana" e "metade deusa" (v.2).E, por transitar entre o "mundo dos mortos e dos vivos" (v. 10) possui consciência de seu papel social no mundo, que é o de reviver a tradição para projetar-se à modernidade, como os versos 17 e 18 confirmam: "- compreender as deusas do passado/é celebrar a força das mulheres".

Celebrando a força das mulheres através de narrações mitológicas, o eu lírico feminino, no poema XX, explicita que a poesia tem o poder sagrado de levar vida à alma das pessoas, assim como a mulher tem a capacidade de procriar. Ambas tem o dom de encantar e fecundar, de acordo com os versos 13, 14, 15, 16, 17 e 18: "e então ouvi a deusa no seu nicho:"frutificai, amai, sede fecundos/e a árvore da raça que iniciais/há de amparar-te da raiz ao cume/- Davar, faça-se a luz, Madre Poesia/alma da vida em sua plenitude".

O sujeito poético afirma que sua poesia identifica-se com uma receita para se viver melhor, que ela é um convite para o interlocutor decifrar os mistérios e poderes de deuses passados e um alerta para que o cotidiano não termine com a imaginação humana. No poema I aparece a poesia como que um receituário da poesia, quando o eu lírico diz: "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver". O convite para penetrar na poesia está no poema V: "Podes sonhar os sonhos deste livro/com pensamentos do teu coração", no VII: "benedicte malkpeblis benedicte/e o poema é a senha para entrar", e no XXXII: "ouve esta imagem que atravessa o sonho/dentro da nave antiga da poesia".

Alguns mistérios a serem desvendados estão sugeridos no poema XXVI: "Decifra esta charada do deserto/ que eu indago por vinte e quatro séculos/desvela o meu caminho e então celebra/a regressão das coisas encobertas". O alerta para que não se perca a fantasia, a magia, está nos poemas XXVIII: "recuperar a lenda o verso o sonho/a cada passo do cotidiano", e XXX: "tudo o que o mundo exige agora/é apenas um pouco de magia".
A utilização do pronome pessoal, na primeira pessoa do plural, sugere a comunhão do eu lírico com os demais seres humanos, compartilhando mesma situação e características. Os poemas em que isso ocorre são o V: "nossos corpos alteram os planetas/na mais concreta das levitações/nossos corpos são palcos de promessas/palavras desgarradas da canção"; o XXV: "Essa parte de nós que já esquecemos", "nós viemos de Rhodes e de Lesbos"; e o XXI: "Chego aqui e te encontro. Na clonagem/que fizeram de nós deusas passadas".

A poesia é citada pelo eu lírico como inspiração, entusiasmo criador, e como possibilidade de se ultrapassar os limites terrenos. A comprovação de que há referência à poesia está nos poemas: X ("roma calon romani zinganare/poesia eu vim trazer à tua espécie"); XX ("Davar, faça-se a luz, Madre Poesia/alma da vida em sua plenitude"; e XXXV ("tua imagem me traz clarividência/ó deusa anterior ó mãe sagrada/poesia é uma saudade de outra vida/batendo nos portais da eternidade").

No último poema, o XL, o sujeito poético questiona-se sobre como ele pode ser definido, se há a possibilidade de se aventurar por outras vidas e por culturas passadas. As interrogativas: "Uma pedra ou mímese involuntária?/Uma estátua ou o espelho em que flutua?/Serei eu um espelho unificado?/Serás tu a matriz da semelhança?" apontam para uma análise existencial do ser humano, desmitificando crenças, valores e a tradição da arte e da vida.

Reconhecendo-se capaz de ultrapassar os limites da realidade e remeter-se temporalmente a outras épocas, o sujeito poético afirma que repassa ao leitor a trajetória milenar da arte e sua forma de concebê-la. Nesse processo, a poesia surge como o elo entre a realidade e a sacralidade, entre o passado e o cotidiano, buscando repassar ao ser humano um receituário de viver.

O livro é composto por 40 poemas numerados em algarismos romanos. A não intitulação dessas partes prenuncia a composição de um texto único e não um agrupamento de vários textos. O modelo poético escolhido para construção das partes que compõem o livro, foi a utilização de quatro estrofes de quatro versos cada e um dístico ao final. O esquema rítmico dos versos é predominantemente decassílabo.

Essas partes constitutivas da concepção formal estão interligadas a um tipo de música que possui intensa relação com a poesia. A intrínseca musicalidade do texto poético, a plasticidade rítmica do verso decassílabo e a escolha de um modelo único para a composição das partes do livro são indícios da presença musical em Zinganares.

A formação de quartetos e um dístico ao final dos poemas sugere a constiuição de uma espécie de coda. Na música, a coda, ou cauda, é uma seção conclusiva de uma composição em que há repetições. Na obra, os dísticos quando repetem os versos iniciais de cada estrofe acentuam a circularidade do poema. Essa forma de composição pode ser denominada leitmotiv, uma técnica que associa melodia e harmonia a uma idéia. Assim, a forma reafirma a circularidade dos poemas e sugere a circularidade do tempo e da música.

Em Zinganares, livro de Lucila Nogueira publicado em Portugal, o leitmotiv expressa, além da circularidade formal e temática, as ressonâncias de estribilhos e de paralelismos das cantigas trovadorescas, que durante a Idade Média galaico-portuguesa produziam alianças entre letra e música.

Quanto à sonoridade, os versos ganham relevo pelo resultado de sua elaboração. As rimas são consoantes ("fatais/mortais" (II)), e toantes ("escrevo/vejo"(VI)). A aliteração está presente reforçando o aspecto sonoro dos poemas, como se exemplifica repetição do /s/ em "sonhando sonhos sobrenaturais" (IV) e do /m/ em "O mundo como um sonho e como um filme (XIV). A assonância aparece com maior recorrência, como se lê no poema V: " nossos corpos são palcos de promessas"; no VI: " O que escrevo não sei se é o que escrevo"; e na estrofe inteira do poema XXX: " Adivinhei as cartas do baralho/pronunciei as letras escondidas/modifiquei a lei da gravidade/desafiei todo materialismo".

Outros recursos formais presentes são o paralelismo e a anáfora. O paralelismo se manifesta em versos inteiros, como no poema I, em que os quatro quartetos iniciam com os mesmos versos: "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver" (v. 1- 2, 5 -6, 9 -10, 13 -14); ele está presente também na repetição de estruturas sintáticas, como no poema VII: "Esta palavra beira o precipício"( v. 1), "esta palavra beira o sacrifício"(v.5).Em meio ao paralelismo sintático, a anáfora se exemplifica no poema XXI, com a repetição do verbo "ser" nos versos: 11 ("sou a memória do teu mimetismo"), 12 ("sou a saudade anônima da pele"), 13 ("sou instrumento de teu desafio") e 14 ("sou testemunha do teu pranto eterno"); no poema XXXVI, a anáfora está expressa com o termo "pelo", nos versos 13 ("pelo transe da bola de cristal"), 14 ("pelo vôo do pássaro nocturno"), 15 ("pelo anel solitário no alfabeto") e 16 ("pelo canto da fonte dos murmúrios"); e no poema XXXVII, com o advérbio de lugar "eis", nos versos 13 ("eis o chão terminal da ultrapassagem"), 14 ("eis a vida em retorno que buscavas"), 15 ("eis a ancestralidade que sonhavas") e 16 (‘eis o rosto que olhavas do outro lado"). A aparição da conjunção "nem", no poema XXXII, nos versos 9 ("nem Sumer nem Acad nem Babilônia"), 10 ("nem Tiro nem Cartago ou Samaria") e 11 ("nem Tebas Mênfis ou Alexandria"), demonstra que o polissíndeto também é um recurso utilizado pela poeta.

O encadeamento dos versos é sugerido pela sintaxe: "e aqueles que sorriam pelas costas/recitarão meus versos sem os ler" ( I ) e pela omissão dos sinais de pontuação: "chego aqui e te encontro. Chego exausta/replicante de ti sigo os teus passos/ausentes suplicando a velha forma/replicante de mim que me embaraça" ( XXXI). A ausência completa de pontuação só não ocorre nos poemas XVI, XVII, XX, XXI, XXII, XXIII, XXIX, XXX, XXXI, XXXIII, XXXVI, XXXIX, XL. Os dois pontos, a vírgula, o ponto final e o ponto de interrogação são os sinais utilizados.
No conjunto das figuras de estilo, a que mais se destaca nos poemas é a antítese. No poema VI, o eu lírico questiona contraditoriamente sua originalidade : "sou não sou assim como num sonho/são não são as imagens do absurdo/tão reais e irreais como este mundo/enquanto eu as projeto as construo/enquanto eu as aumento as diminuo/o que escrevo não sei se é o que escrevo/ou o que alguém em silêncio confessou"; em outros momentos, refere a dualidade antitética existencial: "vida e morte nos fazem delirar"(VII), "que morre e ressuscita sem partir" (VIII), "vida e morte no vão desta janela" (IX); também afirma a improvável aproximação de dimensões: "surjo e desapareço como o fogo/posso entrar e sair da vida humana"(XXII); ou caracteriza a ambigüidade do plano corporal e espiritual: "metade clara de teu lado escuro"( XXXIII).

A utilização dos verbos em quase todos os poemas dá-se no tempo presente, o que evidencia a historicidade da temática, na qual o eu lírico transita. A incidência de verbos no pretérito perfeito do indicativo e do subjuntivo expressa ações realizadas em outras dimensões: "enlouqueci/ suicidei/ inventei/ confundi/ atravessei/ vaguei/ venci" (XV); "Cheguei/vim" (XXI); "adivinhei/ pronunciei/ modifiquei/ desafiei/ caminhei/ atravessei/ adormeci" (XXX): "gritasses/ atravessasses/ retornasse/ emparedasse/ trouxesse" (XXXVII). As poucas aparições do verbo no tempo futuro denunciam o tom premonitório da poesia. Os poemas I: "Falarão meus poemas pelas ruas/recitarão meus versos sem os ler/dirão que era poesia e não loucura/perguntarão por que vivi tão pouco"; e XXXVIII: "Se não houver a morte que inventamos/e se formos projetos de outro plano/e se eu for essa mesma do outro lado/então serei somente desengano"; os dois poemas referidos expressam que a poesia transita pelo presente-eterno e que todos os seres, independente de épocas, entram em contato com ela.

A composição formal da obra apresenta um padrão de elaboração clássica, que eleva a qualidade dos poemas a um patamar de extrema nobreza. O uso de rimas, a exploração de aliterações e assonâncias, a escassez de pontuação, a presença de figuras de estilo, aliadas à regularidade dos versos decassílabos e aos quartetos e aos dísticos, identificam-se com uma arte poética sacralizada e, por isso mesmo, coerente com uma temática do livro, que apresenta a poesia como imortal. A temática da imortalidade da arte está associada ao fato de o eu lírico migrar pelo passado histórico e pelas dimensões, resgatando a magia, o mistério e os enigmas da existência. Assim, também, a forma elaborada e sagrada dos versos que atravessam os séculos da história humana.

Os poemas de Lucila Nogueira expõem um eu lírico com poderes sobrenaturais que tem possibilidade de transitar pelas dimensões terrena e sagradas, que apresenta permanência eterna, que consegue penetrar na mente de seres humanos e que é capaz de prever os rumos da humanidade. Dessa forma esse eu lírico afirma possuir força e coragem adquiridos em suas transposições milenares. A volta às origens, ao tempo mitológico, é uma maneira de buscar respostas para os enigmas antigos e os contemporâneos.

Repassando a idéia de que a arte poética é inerente ao ser humano, que ela permanece no tempo e nas pessoas, o poema I vaticina a vida para a poesia do eu lírico, mesmo nos indivíduos que a desconsideravam: eles "recitarão meus versos sem os ler" (v.4). O uso de verbos no tempo futuro, reiteradamente, intensifica a certeza da previsão: todas as pessoas entenderão e guardarão a poesia. Elas "falarão" (v.1, 5, 9 e13) ", recitarão" (v.4 e 18), "dirão" (v.7 e 11) e "perguntarão" (v.15). A reiteração paralelística de "Falarão meus poemas pelas ruas/de cor como receita de viver", no início dos quatro quartetos (versos 1, 5, 9 e 13) reafirma a convicção da poesia como permanência intemporal, por ser como uma verdade sagrada para a vida ("receita de viver"). Ela estará nas "ruas" (cidade) e também na memória, no coração ("de cor") de todos:

I
(1) Falarão meus poemas pelas ruas
(2) de cor como receita de viver
(3) e aqueles que sorriam pelas costas
(4) recitarão meus versos sem os ler
(5) Falarão meus poemas pelas ruas
(6) de cor como receita de viver
(7) dirão que fui um mar misterioso
(8) onde quem navegou não esqueceu
(9) Falarão meus poemas pelas ruas
(10) de cor como receita de viver
(11) dirão que era poesia e não loucura
(12) meu jeito de sonhar todos vocês
(13) Falarão meus poemas pelas ruas
(14) de cor como receita de viver
(15) perguntarão por que vivi tão pouco
(16) sem dar-lhes tempo de me perceber
(17) - e aqueles que sorriam pelas costas
(18) recitarão meus versos sem os ler

Na descoberta "a posteriori" do valor da poesia, as pessoas buscarão a imagem do "mar", para aludir à obscuridade não compreendida: "dirão que fui um mar misterioso"/onde quem navegou não esqueceu" (v.7). Uma das possibilidades de interpretação simbólica do mar é aceitá-lo como um lugar de nascimentos, de transformações e de renascimentos. Assim, tudo sai do mar e tudo retorna a ele.

Nesse poema, o eu lírico prenuncia que todas as pessoas irão contactar com seus versos por eles representarem o sentido para a vida, por eles dizerem o que todos os seres humanos diriam por estar vivos. Como as águas do mar, onde tudo começa e termina, imagem de unidade vital cíclica permanente, os poemas farão parte da vida humana futura, como única linguagem verdadeira dos homens.

A "receita de viver" sugerida no poema I, com a garantia de ser inesquecível, é especificada nos demais poemas da obra. O eu lírico vai detalhando o conteúdo presente na receita, como se pode analisar no poema II:

II
(1) O que vejo nas almas eu escrevo
(2) tua hipnose é minha profissão
(3) teu amor e teu ódio eu converto
(4) em figuras e fábulas e sons
(5) posso te dominar pela magia
(6) devolver tua lenda inicial
(7) posso tirar um sonho de tua argila
(8) e fazê-lo mover-se à luz do sol
(9) o que vejo nas almas eu escrevo
(10) sob a forma de enigmas fatais
(11) com adivinhações inacessíveis
(12) à lógica empirista dos mortais
(13) esse poder mental nasci com ele
(14) já não oculto a sua combustão
(15) esse poder mental nasci com ele
(16) desculpa-me de ler teu coração
(17) - o que vejo nas almas eu escrevo
(18) tua hipnose é minha profissão

A matéria do poema é o resultado em forma de escrita da percepção da alma dos outros: "O que vejo nas almas eu escrevo"; este verso inicial da primeira estrofe se repete alternadamente, aparecendo também no começo da terceira e quinta estrofes (versos 1, 9 e 17). A possibilidade de converter sentimentos opostos ("amor" e "ódio") em figuras, fábulas e sons é realizável pelo eu lírico porque o mesmo afirma já ter nascido com esse poder mental.

Adjetivos como "fatais" e "inacessíveis", ligados a expressões como "enigmas" e "adivinhações" sugerem o mistério que envolve a situação existencial humana e a decifração ("hipnose", "magia", "adivinhações", "poder mental") dessa obscuridade que a linguagem poética ousa tentar. A sacralização da existência é evidente, porque só com recursos extraordinários é possível devolver ao ser sua "lenda inicial", ou seja, sua história sagrada, mítica. O eu lírico, mitificado como a própria poesia, mostra a diferença entre os poetas e os mortais. Ele domina pela magia, ele materializa e dá vida ao sonho, ele se comunica com as almas pela hipnose é capaz de ler o alheio coração. Esse "poder mental", diferenciador, é que o singulariza.

No poema III, a alusão aos deuses e aos locais sagrados evidencia os elementos que são referendados pelo eu lírico na composição dos versos. Reitera-se que o contato entre os humanos e o sujeito poético é feito pela mente, como se pode ver na repetição da idéia, nos versos 2 e 18:

III
(1) Como os caldeus eu leio a tua mente
(2) e entendo a tua alma sem falar
(3) eu digo o que esqueceste para sempre
(4) o que nunca te ocorre perguntar
(5) espelhos minha imagem multiplicam
(6) clone golem perdido nos espaços
(7) e a luz atoniana dos meus discos
(8) prossegue a rotação dos meus oráculos
(9) sou face de Baal em véu de Ísis
(10) sou estátua de cura da cidade
(11) deusa dos cananeus e dos sidônios
(12) o incenso queima nos meus santuários

(13) escuta este meu verso em fogo vivo
(14) onda de rádio num lugar sagrado
(15) as vibrações eletromagnéticas
(16) guiam constelações sempre que falo
(17) - como os caldeus eu leio a tua mente
(18) e sem falar entendo a tua alma

A indicação de três povos: caldeus, cananeus e sidônios sugere a migração geográfica e temporal possível de ser realizada pelos poetas. Com esse poder, é possível resgatar qualquer acontecimento e/ou crença que os mortais não perpetuaram. Os advérbios de tempo "sempre" e "nunca", nos versos 3 e 4 reforçam isso. A demonstração de que o eu lírico pode estar representado de várias maneiras manifesta-se nos versos 5, 7, 9 e 10 na forma de "imagem", "disco" (luminoso), "deusa" e "estátua". Tudo para conseguir entender a existência que é mítica, penetrando na mente humana.

Segundo Mircea Eliade, essa possibilidade de histórias sagradas relatarem acontecimentos ocorridos no passado, configura a matéria mítica, como no poema III está sugerido.
O eu lírico, além de se autodefinir com capacidade mental de traduzir sentimentos humanos e de transpor a matéria, caracteriza-se como imortal no poema IV:

IV
(1) Eu sou a não nascida que não morre
(2) sonhando sonhos sobrenaturais
(3) daimon sobrevivente nos relógios
(4) da quarta dimensão querendo paz
(5) consciência alterada do invisível
(6) cumprindo o seu papel premonitório
(7) a revelar os mundos esquecidos
(8) de um texto concebido em hipnose
(9) trago o poder perdido nas pirâmides
(10) do México e do Egito e nos degraus
(11) de cada zigurate eu entro em transe
(12) para curar doentes terminais
(13) eu sou a mais antiga e a mais moderna
(14) narração de teu rumo sobre a terra
(15) recital visionário de crateras
(16) revelação que arrasta o que revela
(17) - eu sou a não nascida que não morre
(18) sonhando sonhos sobrenaturais

A primeira estrofe confirma a condição eterna do eu lírico, por ele não nascer e nem morrer como acontece com os seres humanos. Configurando-se como daimon, espírito, divindade capaz de ultrapassar dimensões, e representando fantasticamente sonhos, o eu lírico traz à consciência o que era invisível e o que estava esquecido. Os versos nº 5: "consciência alterada do invisível", e nº 7: "a revelar os mundos esquecidos", configuram o estado de ânimo alterado do sujeito poético no momento da criação e o alvo temático de sua poesia.

Esse estado pode ser como uma hipnose, um transe ("de um texto concebido em hipnose" – v.8), sendo o eu lírico um sujeito mítico atemporal que narra a verdade do outro ("narração de teu rumo sobre a terra" - v. 14) como um recital vulcânico ("recital visionário de cratera" - v. 15), que é sinônimo de epifania ( " revelação que arrasta o que revela" - v. 16). A aliteração da letra /s/ em "sonhando sonhos sobrenaturais", nos versos 2 e 18, sugere o som do vento, do passar do tempo, comprovando a transposição de planos e a constância da poesia entre os mortais.

A obscuridade da gênese criadora, evidenciando o território mítico da poesia, manifesta-se claramente ao longo dos dezoito versos do poema VI:

VI
(1) O que escrevo não sei se é o que escrevo
(2) ou o que alguém em silêncio confessou
(3) o que eu vejo não sei se é o que vejo
(4) ou o que o espelho jogou fora do tom
(5) contraceno com sombras de mim mesma
(6) imagem virtual de outras visões
(7) perpetuo as imagens do modelo
(8) transgenia em telômero de chão
(9) sou não sou eu assim como num sonho
(10) e o filme de mim mesma continuo
(11) são não são as imagens do absurdo
(12) tão reais e irreais como este mundo
(13) enquanto eu as projeto eu as construo
(14) enquanto eu as aumento as diminuo
(15) o que vejo não sei se é o que vejo
(16) ou o que o espelho jogou fora do tom
(17) - o que escrevo não sei se é o que escrevo
ou o que alguém em silêncio confessou

A presença da conjunção coordenativa alternativa "ou", nos versos 2 e 4, e sua repetição por mais duas vezes, retoma a idéia de que a criação poética é a representação de alguma coisa já existente. Dessa forma, o eu lírico apresenta incertezas sobre a procedência de sua escrita e de sua visão.
A utilização das idéias antitéticas: "sou não sou eu assim como num sonho" (v.9), "são não são as imagens do absurdo" (v.11), "tão reais e irreais como este mundo" (v.12), "enquanto eu as projeto eu as construo" (v.13), "enquanto eu as aumento as diminuo" (v.14), retoma o poder mental que o eu lírico diz possuir e por isso duvida se o que vê e escreve são imagens criadas por ele ou percepções já existentes de outras mentes ou níveis. O verbo "perpetuar", em "perpetua as imagens do modelo" (v.7), alude à eternização do ato criador através da poesia, no tempo.

O poema VIII, além de referir espaços geográficos e ações simbólicas incorporadas pelo sujeito poético, alude ao termo "mistério"(v.4), como sendo o conjunto de definições para o eu lírico. O texto diz:

VIII
(1) Sou capaz de viver em vários planos
(2) metáfora das deusas que vivi
(3) eu sou o sincretismo de um mistério
(4) que morre e ressuscita sem partir
(5) sacerdotes caldeus deram-me um livro
(6) na cidade de Elo e eu compreendi
(7) essa doutrina que não foi escrita
(8) precursora dos sábios de Saís
(9) quando as águas baixaram sobre a ilha
(10) os guanches e os atlantes revivi
(11) as palmas no tablado as ervas mágicas
(12) a tourada o flamenco o chafariz
(13) meu observatório iniciático
(14) exílio circular dentro de mim
(15) eu decifrei sinais previ eclipses
(16) fórmulas rituais reconheci
(17) - sou capaz de viver em vários planos
metáfora das deusas que vivi

A convicção da capacidade do eu lírico de transpor-se por diferentes dimensões está definida no verso 1: "Sou capaz de viver em vários planos", que é repetida no verso 17. Essa declaração se confirma na segunda, terceira e quarta estrofes, quando se resgatam civilizações, tradições e mitos, povoações milenares como "sacerdotes caldeus" (v.5), "sábios de Saís" (v.8), "ganches" (v.8) e "atlantes" (v.8), tudo incorporado no eu lírico.

O fascínio que a poesia exerce sobre as pessoas é trazido dos espetáculos e/ou rituais realizados no passado. Os elementos "palmas"/ "tablado"/ "ervas mágicas" (v.11) e "tourada"/ "flamenco"/ "chafariz’ (v.12) sugerem a representação de idéias, crenças, modos de vida desses povos e que estão eternizados na criação poética moderna. As ações de decifrar, prever e reconhecer citadas pelo eu lírico nos versos 15 ("eu decifrei sinais previ eclipses") e 16 ("fórmulas rituais reconheci"), confirmam a sua capacidade mítica de transitar pelos planos terreno e espiritual.

Metaforizar-se em deusas, exilar-se em si mesma e compreender uma doutrina não conceituada são formas utilizadas pelo eu lírico para perpetuar o mistério que envolve o ato de criação da poesia e seu efeito encantatório no ser humano. O convite feito ao interlocutor para decifrar os enigmas presentes na arte e na vida, e para que o ser humano imortalize a poesia está nos poemas VII, X, XXXVI e XXIX.

O poema VII confirma, insistentemente, que existe uma maneira de as pessoas entrarem em contato com histórias de deuses e com o poder exercido por objetos míticos: ler poemas e decifrá-los. A repetição dessa idéia está nos versos 4, 8, 12, 16 e 18:

VII
(1) Esta palavra beira o precipício
(2) mas ninguém solta o livro sobre o altar
(3) benedicte malkpeblis benedicte
(4) e o poema é a senha para entrar
(5) esta palavra beira o sacrifício
(6) mas dá disposição para voar
(7) uso divinatório de um zodíaco
(8) e o poema é a senha para entrar
(9) estas ervas secretas tem feitiço
(10) vida e morte nos fazem delirar
(11) benedicte malkpeblis benedicte
(12) e o poema é a senha para entrar
(13) narcótico da lenda do destino
(14) é o magma dos místicos do mar
(15) esta palavra beira o hipnotismo
(16) e o poema é a senha para entrar
(17) - benedicte malkpeblis benedicte
e o poema é a senha para entrar

A utilização dos termos "precipício", "sacrifício" e "hipnotismo", nos versos 1 ("Esta palavra beira um precipício"), 5 ("esta palavra beira o sacrifício") e 15 ("esta palavra beira o hipnotismo") sugere o empenho que o leitor de poesia deve fazer para alcançar uma espécie de êxtase de compreensão do incompreensível que a "palavra" poética permite. A obscuridade do poema não aponta para leituras unilaterais e definitivas; mesmo assim a arte fascina e não é posta de lado, como os versos 2 e 6 indicam, respectivamente: " mas ninguém solta o livro sobre o altar" e "mas dá disposição para voar". A conjunção coordenativa adversativa "mas" comprova que o fascínio atrai.

Além de encantar as pessoas e instigá-las ao sonho, o poema seduz pelo mistério que possui e pela dualidade que sugere. Isso é identificado nos versos 9 ( "estas ervas secretas tem feitiço") e 10 ("vida e morte nos fazem delirar"). A presença reiterada de um verso em um idioma não conhecido retoma o fascínio, o mistério e a magia que a poesia exerce sobre os humanos. A tradução de "benedicte malkpeblis benedicte" (v.3, 11 e 17) é a possibilidade de o leitor transpor para a arte seus sonhos, seus desejos. Esse contato ao mesmo tempo que imortaliza o poema, também aproxima a arte ao cotidiano, à vida humana.

A palavra, entretanto, é o meio para o conhecimento do que não se dá a conhecer, e o poema o lugar onde ela se ilumina ("a senha").
O poema X também apresenta por três vezes um verso em outro idioma: " roma calon romani zinganare" (v. 3,7 e 17). Assim como no poema VII, nesse há o convite do eu lírico para o interlocutor decifrar o alfabeto não conhecido através da realização de ações sugeridas em vários versos:

X
(1) Eu sinto o sentimento que tu sentes
(2) as letras do teu sonho eu interpreto
(3) roma calon romani zinganare
(4) vem recitar comigo este alfabeto
(5) vem passear no fio da navalha
(6) desamarrar as linhas do universo
(7) roma calon romani zinganare
(8) malabarista em casa de trapézio
(9) entende a senha inscrita nas muralhas
(10) engolidor de fogo sobre o teto
(11) vem descobrir segredos de batalha
(12) vem dominar a voz de teu reflexo
(13) sobe da gruta na escada rolante
(14) tira dos pés os trilhos que te ferem
(15) que a invasão das serpentes legendárias
(16) nas ilhas de Ofiusa é tua prece
(17) - roma calon romani zinganare
poesia eu vim trazer à tua espécie

O grande apelo dos quarenta poemas de Zinganares é, portanto, que os homens busquem conhecer os modelos exemplares de seres humanos e de entidades sobrenaturais para compor o seu próprio modelo terreno. Tal resgate só é viável através do devaneio, do deleite poético, pois a reunião da matéria do espírito só terá quem abrir o "livro" e deixar-se iluminar pelos versos de Lucila Nogueira.

Lucila Nogueira, que é certamente uma poeta comprometida com sua consciência existencial e com a perpetuação do ato poético. E como se não bastasse o próprio comprometimento, sua poesia convida as pessoas a participarem de uma "receita de viver", a qual se confunde com a imersão, pela leitura, no mundo de uma arte sugestiva, enigmática e mítica. De seus poemas fica a certeza de que há um aspecto cíclico, permanente e mágico da existência, perceptível pela arte. Zinganares concilia tradição e modernidade, passado e presente, matéria e espírito, de maneira harmoniosa e instigante, sendo uma obra que enobrece as letras brasileiras, e uma contribuição singular para o cenário da poesia lírica moderna.


EU AOS SEIS ANOS NA PRIMEIRA COMUNHÃOLucB


EU AOS SEIS ANOS NA PRIMEIRA COMUNHÃOLucB
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devia ser nessa idade que meu pai me levou ou levava ao edifício da praia do flamengo que eu redescobri este ano através da grade da porta pesada com o porteiro dentro onde ele ao modo do sentinela do conto "diante da lei" de kafka não me deixou passar
acontece que o meu amigo está morando ao lado e ontem (papel na mão e caneta vermelha)tentei novamente(sem sucesso) visitar a entrada : tive que me contentar em continuar a ver tudo lá de fora mas em meio àquele ambiente mourisco com signos que parecem maçônicos revelou-se a inscrição "serena spectantibus hora" : a hora é serena para os que esperam
impressionadíssima lembrando ainda da águia imensa lá no alto e de que aguiar é o lugar onde ela mora retorno no pássaro gigante ao meu aquário onde encontro uma foto do prédio à luz da lua e descubro talvez o motivo de meu pai lá me ter levado : o edifício chama- se Seabra...

EU AOS SEIS ANOS NA PRIMEIRA COMUNHÃOLucB

Rua do Lima

á memória de minha avó Lucilla
I


Esses dias de chuva lembram sempre
as tardes de leitura no sobrado
viagens na cadeira de balanço
comendo um alfenim iluminado

João Pé-de-Feijão, Gato de Botas
Pele de Asno, Gata Borralheira
A Bela Adormecida, a Moura Torta
e eu era Alice atravessando espelhos

os olhos muito verdes no silêncio
a avó dormindo, a empregada muda
a escada o corredor a travessia
pelos mares da infância absoluta

União, Cabugá, Gervásio Pires,
murmúrio das galochas sobre a água
a capa, o guarda-chuva e era mais triste
no colégio o recreio emparedado

esses dias de chuva lembram sempre
o cágado nadando no alagado
quintal de uma criança dividida
além de Botafogo e Santo Amaro

a Rua Caimurano, o realejo
parado na Voluntários da Pátria
e eu ia visitar na Real Grandeza
minha avó portuguesa e seus canários

anúncios coloridos pelo bonde
Phymatosan, Juvenia, Gato Preto
tudo era cheiro de lança-perfume
e a escuridão do túnel meu segredo

a bica no terraço, a queda d’água
seu cântico perene e a Serpentina
Gigante que arremessa quando chove
um sol no meu cenário de menina.

II

Visões obstinadas me seguiam
da porta do sobrado para o sono
as roupas penduradas na parede
me olhavam como espíritos na sombra

e a umidade escorria das paredes
rumo às cores geladas do assoalho
só não era sombrio e indiferente
o carrossel de vidro sobre o aquário

eu tinha um avental azul e branco
e uma lancheira pendurada ao braço
dois laços de organdi entre os cabelos
e estrelas escondidas no meu quarto

um cristal onde eu via o arco-íris
vara de pegar manga-rosa e espada
o ímã que atraía os alfinetes
os discos portugueses de saudade

os bambus e as roseiras no canteiro
minha avó como eu tão delicada
e o dia em que no sótão alguém disse
querer jogar-me no Capibaribe

letreiros luminosos sobre o rio
eu sentada no ônibus “Cidade”
e na volta da escola ao meio-dia
o jogo de operários na calçada

número cento e dois, Rua do Lima:
casa tão pequenina e tão gigante
por onde foi crescendo essa menina
fada de Peter Pan tocando o sonho.


III

Ninguém sabia que eu era poeta
nem mesmo a noite com seu mar de mágoas
ninguém notava no meu dia-a-dia
a sensibilidade alucinada

mundo que eu tanto olhava e não me via
humanidade: foto congelada
assustando a passagem da alegria
na criança abstrata e solitária

versos adolescentes, eu vos amo
Colégio São José, Rua do Lima
Parque Treze de maio, já não brinca
na calçada a pobre menina rica

atravessei a vida entontecida
olhando para trás, levando quedas
fada feérica em fulgor de febre
amarrada ao noturno das comédias

festim feroz, feriu-me a fera fria
e o corpo que era etéreo se fez carne
carne desmesurada, carne viva
perplexa e indefesa carne alada

carne desesperada, estremecida
rebelde da paixão fragmentada
carne deusa do sonho e da magia
a razão se confessa tua escrava

Pó de Pirlimpimpim, Terra do Nunca
esses dias de chuva me recordam
e eu que sou luz vulcânica entristeço
mar de melancolia em plena mágoa.

EU BEBÊ SENTADA NA MESA LucA


EU BEBÊ SENTADA NA MESA LucA
Upload feito originalmente por lucnog2
nascida no rio na maternidade da piedade minha mãe me trouxe aos nove meses pela primeira vez ao recife onde esta foto foi tirada
passaria toda a infância e parte da adolescência nessa ponte aérea
até a morte do meu pai na minha pouca idade de vinte e cinco anos

Flickr

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